Novos investidores da bolsa desafiam jargões e tabus ao sair da poupança
Investir na bolsa de valores mete medo em muita gente, principalmente em quem não conhece muito bem o mundo dos investimentos. Nos últimos meses, no entanto, um número recorde de novos investidores da bolsa mostrou que o brasileiro está vencendo o receio de investir nos mercados de ações e fundos imobiliários.
Somente de janeiro a outubro de 2020, 1,46 milhão de pessoas estrearam na bolsa, fazendo o número de pessoas físicas na B3 dobrar. São brasileiros que venceram a tradição familiar de guardar dinheiro na poupança. Que enfrentam perguntas desconfiadas dos parentes e amigos sobre algo que ainda é visto como um cassino. E que muitas vezes se sentem um pouco perdidos por não entenderem os jargões de mercado.
A SUNO Notícias ouviu a história de três destes investidores para saber mais sobre como pensa e age o novato da bolsa. Confira:
Vencendo a desconfiança
Embora o mercado de renda variável seja mais comum do que antes no Brasil, ele ainda desperta desconfiança de muita gente. A estudante de odontologia Larissa Ferreira, de 21 anos, conta que investir em bolsa é algo visto como um tabu entre seus parentes e está longe de ser um tema discutido pelos amigos e colegas de faculdade.
Larissa comprou seu primeiro ativo na B3 no dia 3 de novembro de 2020, depois de quase seis meses estudando sobre o tema. A estreia ocorreu com uma cota do fundo imobiliário HSML11, no qual ela iniciou o investimento com R$ 89. O próximo passo será investir em ações. Além dos papéis da carteira SUNO, ela considera investir em empresas como Fleury (FLRY3) e Ambev (ABEV3).
A trajetória, no entanto, tem sido solitária, já que o assunto é visto com desconfiança pelas pessoas ao redor. “Não falo disso com ninguém, porque o preconceito é muito grande. Provavelmente vão achar que estou jogando dinheiro fora”, afirma Larissa, que vive em São José dos Campos (SP).
Segundo ela, este “tabu” só vai cair quando mais gente entrar no mercado, e falar de bolsa de valores se tornar mais comum. “Acho que se este assunto for tão trivial como falar de poupança, as pessoas não vão ter esta fobia”, diz.
O desejo de investir surgiu quando Larissa fez um curso gratuito de planejamento financeiro, em julho de 2020. Na ocasião, ela percebeu que seria importante ter um “plano B” para sua carreira de dentista. Até então, ela contava apenas com investimentos em renda fixa atrelados ao CDI como reserva de emergência.
Aos poucos, a estudante de odontologia começou a estudar o mercado de investimentos, mas o caminho não foi fácil. “Eu não tinha noção de nada, então foi muito, muito difícil mesmo este aprendizado”, conta. Quando ela começou a receber os recursos de sua bolsa de iniciação científica da faculdade, já estava um pouco mais preparada para dar seus primeiros passos.
A sensação de investir em renda variável pela primeira vez agradou a jovem investidora. “Foi muito empolgante”, conta.
No futuro, ela sonha em investir no exterior, embora ainda não se sinta segura para isso. Por ser mulher, Larissa está vencendo barreiras culturais ainda maiores ao investir.
De acordo com dados da B3, o número de mulheres investidoras na bolsa de valores chegou a 809,5 mil em setembro deste ano. Ou seja, quase o dobro das 388 mil vistas um ano antes. No entanto, ainda representam uma fatia de apenas 25,7% do total, conforme a tabela abaixo.
Distribuição da participação de homens e mulheres | |||||
no total de investidores pessoa física | |||||
Ano | Homens | Mulheres | Total PF | ||
Qtd | % | Qtd | % | Qtd | |
2002 | 70.219 | 82,37% | 15.030 | 17,63% | 85.249 |
2003 | 69.753 | 81,60% | 15.725 | 18,40% | 85.478 |
2004 | 94.434 | 80,77% | 22.480 | 19,23% | 116.914 |
2005 | 122.220 | 78,76% | 32.963 | 21,24% | 155.183 |
2006 | 171.717 | 78,18% | 47.917 | 21,82% | 219.634 |
2007 | 344.171 | 75,38% | 112.386 | 24,62% | 456.557 |
2008 | 411.098 | 76,63% | 125.385 | 23,37% | 536.483 |
2009 | 416.302 | 75,37% | 136.062 | 24,63% | 552.364 |
2010 | 459.644 | 75,24% | 151.271 | 24,76% | 610.915 |
2011 | 437.287 | 74,98% | 145.915 | 25,02% | 583.202 |
2012 | 438.601 | 74,70% | 148.564 | 25,30% | 587.165 |
2013 | 440.727 | 74,79% | 148.549 | 25,21% | 589.276 |
2014 | 426.322 | 75,57% | 137.794 | 24,43% | 564.116 |
2015 | 424.682 | 76,23% | 132.427 | 23,77% | 557.109 |
2016 | 433.759 | 76,90% | 130.265 | 23,10% | 564.024 |
2017 | 477.887 | 77,13% | 141.738 | 22,87% | 619.625 |
2018 | 633.899 | 77,94% | 179.392 | 22,06% | 813.291 |
2019 | 1.292.536 | 76,89% | 388.497 | 23,11% | 1.681.033 |
2020 | 2.337.507 | 74,28% | 809.533 | 25,72% | 3.147.040 |
*Posição de Outubro/2020 |
Selic em queda empurrou investidores para um novo caminho
O que praticamente todos os novos investidores da bolsa têm em comum é a percepção de que os investimentos em renda fixa valem cada vez menos a pena. Com a Selic no piso histórico, a 2% ao ano, aplicações que antes davam bons rendimentos hoje deixam a desejar.
Foi isso que levou o técnico eletricista Nei Salvador, de 42 anos, a estrear no mercado de renda variável. Investidor de renda fixa há 13 anos, ele conta que notou a rentabilidade caindo nos últimos anos e passou a pesquisar outras alternativas de investimento, até concluir que deveria investir na bolsa.
“Comecei a estudar por conta própria e cheguei na Suno há três anos”, conta. Seus primeiros ativos foram fundos imobiliários, nos quais ele começou a investir com R$ 5 mil, mas depois ele ampliou sua carteira para fundos de ações. Com a crise do coronavírus, ele conta que sua carteira de fundos de ações sofreu uma desvalorização muito maior do que a de fundos imobiliários.
“Acredito que vou levar três a quatro anos para recuperar o que perdi nos fundos de ações, mas em FII minha recuperação foi muito mais rápida”, conta o investidor, que mora em Uberlândia (MG). Além disso, ele começou a comprar ações de empresas neste ano, mas conta que ainda não teve perdas nem ganhos. Sua carteira de ações é focada no longo prazo, para recebimento de dividendos.
De acordo com Salvador, sua visão sobre investimentos em renda variável mudou nos últimos anos. “Antigamente tinha a percepção de que a bolsa era um investimento ultra arriscado, mas hoje percebo que diversificando e focando no longo prazo, o risco é bem menor”, conta. Sua única dificuldade atual é fazer o recolhimento do Imposto de Renda mensal dos seus investimentos. “Já estudei e ainda tenho muitas dúvidas sobre o IR, acho que poderia ser algo mais fácil”, diz.
Novos investidores da bolsa sofrem com jargões de mercado
Além da Selic, a crescente oferta de informações gratuitas na internet sobre investimentos explica o avanço da pessoa física na bolsa. No entanto, para quem está chegando no mercado, as conversas sobre investimentos muitas vezes parecem grego. Termos como Ebitda, CDB e CDI são apenas alguns exemplos de siglas comumente usadas no mercado que assustam os novos investidores da bolsa.
O supervisor de vendas Luiz Gustavo Silveira, de 27 anos, começou a investir em ações há dois meses. Mesmo sendo formado em administração de empresas, ele conta que sente falta de um pouco mais de didatismo por parte dos especialistas do mercado. “Quando você fala com um assessor de investimentos, por exemplo, eles acham natural falar de IPCA, CDI, ‘buy and hold‘… Mas as pessoas não sabem o que é isso. Se estivessem falando com meu pai, por exemplo, não conseguiriam se comunicar.”
Assim como Larissa, Luiz Gustavo superou a tradição familiar de investir apenas na poupança há cerca de dois meses. Sua principal motivação foi garantir uma velhice confortável, aproveitando que ainda mora com os pais e tem recursos disponíveis para investir. Além disso, ele pretende comprar um imóvel no médio prazo.
Atualmente, ele conta com uma carteira de ações e um fundo de previdência, além da parcela em renda fixa. Suas primeiras compras foram ações de empresas como Bradesco (BBDC4), Sanepar (SAPR11), Petz (PETZ3), MRV (MRVE3) e Tecnisa (TCSA3). “Quando entrei estava muito animado e aportei tudo de uma vez só. Mas hoje penso que deveria ter entrado devagar, observando se os papéis estavam com preços bons”, conta o investidor, que mora em Niterói (RJ).
A partir de agora, ele pretende investir em ações que sejam boas pagadoras de dividendos. Somente depois de comprar seu primeiro imóvel ele pretende começar a investir em fundos imobiliários.
Caminho ainda é longo
Mesmo com os grandes avanços da pessoa física na bolsa de valores em 2020, o caminho a trilhar ainda é longo.
De acordo com a pesquisa Raio-X do Investidor da Anbima 2020, 50% dos brasileiros não conhecem ou não utilizam nenhum tipo de investimento. Entre os produtos mais utilizados, a liderança histórica fica com a poupança (37%).
Se este quadro vai se transformar de forma expressiva nos próximos anos, vai depender da manutenção da Selic em baixa, do avanço da educação financeira do país e – claro – de quanto dinheiro o brasileiro terá disponível para investir.
De qualquer forma, quanto mais novos investidores da bolsa existirem, mais fácil será romper a tradição da poupança e vencer a desconfiança dos familiares, assim como decifrar os assustadores jargões de mercado.