Nesta sexta-feira (24), faz um ano desde que a Rússia invadiu o país vizinho e iniciou a guerra na Ucrânia. Seria uma ação “relâmpago” para ocupar o território ucraniano. A previsão era de que a operação fosse rápida, mas o conflito já se estende por doze meses, deixando milhares de mortes. A guerra, que matou civis e militares, mexeu com a economia no mundo todo — e seus efeitos vão desde a crise de refugiados até elevação dos índices de inflação e mudanças drásticas do comércio internacional de commodities e insumos.
Segundo os últimos dados divulgados pela Organização das Nações Unidas (ONU), que classifica a crise de refugiados ucranianos como a pior na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, a ofensiva russa provocou a fuga de 18 milhões de pessoas da Ucrânia.
Ainda conforme a ONU, mais de 7.000 civis morreram desde o começo da guerra iniciada pela Rússia. No entanto, a entidade ressalta a dificuldade de obter dados da região e aponta que o número de mortos é muito maior. Segundo informações do Exército Norueguês, há cerca de 300 mil mortos. Destes, 30.000 mil civis.
Guerra na Ucrânia gera crise global
Além da crise humanitária e de refugiados, o maior conflito armado desde a Segundo Guerra ampliou problemas sociais e econômicos que já afetavam a Europa, EUA e países da América Latina em decorrência da pandemia do coronavírus — afetando a cadeia de oferta e os mercados globais, pressionando a inflação do mundo todo.
“[A guerra] afetou praticamente todas as economias direta ou indiretamente por causa da questão energética e de grãos, que acabou por gerar um efeito em cascata de aumento de preços”, afirmou Idean Alves, chefe da mesa de operações da Ação Brasil Investimentos, lembrando que a Rússia era a principal fornecedora de energia e gás natural da Europa.
Somente em relação ao gás, a Rússia era responsável por 41% do fornecimento para a União Europeia. O país exportava ainda a maior parte do carvão do bloco, com 47% das vendas sob a sua tutela. Além disso, o país comandado por Vladimir Putin também era considerado o principal fornecedor de petróleo da Europa, fornecendo 27% das importações para a região. Com as sanções impostas à Rússia, o país passou a vender a commodity em maior volume à China e à Índia.
Embora carvão e petróleo possam ser manejados sem afetar a cadeia de infraestrutura — já que podem ser enviados de qualquer lugar do mundo por navios — , existe toda uma infraestrutura para o recebimento de gás. Não pode ser facilmente desfeita de uma hora para a outra sem gerar instabilidades para os países. Assim, nem o comprador nem o fornecedor podem diversificar repentinamente — o que gerou a escassez do produto na região e consequentemente a sua alta devido à escassez.
Entre os principais problemas sentidos em termos globais em função do conflito entre Rússia e Ucrânia, está o encarecimento dos alimentos e a inflação generalizados. O economista da XP Investimentos, Francisco Nobre, explica que a inflação já estava alta graças aos gargalos de produção globais e um desequilíbrio na oferta durante a pandemia.
Entre 2020 e 2021, os Bancos Centrais ao redor de todo o mundo já começavam a aumentar suas taxas de juros para frear a inflação — o que levaria a uma desaceleração global da economia. Com a guerra no território ucraniano, o mercado tentou precificar em tempo real o preço dos grãos e fertilizantes, encarecendo não só a alimentação básica, como também aumentando a inflação global, que, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), saltou de 4,4% para 9,3% em 2022. Em 2023, deve ficar em 6,8%.
Diante deste cenário, as perspectivas de crescimento econômico também foram afetadas. Segundo informações da OCDE, as estimativas de crescimento global caíram bruscamente de 3,9% para 1,5% em 2022. Para este ano, o recuo deve ser de 2,5% para 0,8%.
O impacto foi ainda maior no país invadido, presidido por Volodymyr Zelensky. Nesta quinta-feira (23), dados divulgados pela Organização Mundial do Comércio (OMC) apontam que as exportações da Ucrânia registram queda de 30% durante 2022 em meio à guerra com a Rússia. Em contrapartida, as exportações russas registraram alta de 15,6% neste mesmo ano.
Alta das commodities
O maior salto, no entanto, ficou com o preço do barril de petróleo brent, que subiu 50% no início da guerra, rompendo os US$ 120 sem arrefecer do patamar dos US$ 100 por meses em função da tensão crescente entre Rússia e Ucrânia. Neste cenário, houve uma alta do commodity em todo o mundo, aumentando o preço da gasolina para os consumidores finais.
“Foi preciso quase que um semestre para ele voltar a um patamar normal, o atual US$ 80,94 o barril”, destaca Idean Alves, ressaltando ainda que a situação levou os mercados a perceber a importância do investimento em energia limpa, para evitar que as economias fiquem reféns do petróleo.
Além do petróleo, itens energéticos, produtos agrícolas e fertilizantes — e a Ucrânia era uma das maiores produtoras do mundo — foram os que mais sofreram com a alta de preços.
Possível recessão nos Estados Unidos e Europa
O analista da XP explica que a alta do petróleo gerou um aumento em toda a cadeia de produção, fazendo com que os custos para os produtores aumentassem e que estes preços fossem repassados para a população. Com isso, os Bancos Centrais aumentaram os juros para frear a inflação muito alta.
Embora o cenário tenha afetado todo o mundo, a zona do euro foi definitivamente a mais atingida, tanto pela proximidade geográfica, quanto pela dependência do gás natural — considerando que a Rússia é responsável por 41% do fornecimento da União Europeia — e da produção energética russa. Com isso, o poder aquisitivo dos europeus foi impactado e afetou o consumo, levando à contração da economia do bloco.
Como consequência, a OCDE prevê que a guerra da Rússia na Ucrânia deve custar US$ 2,8 trilhões de produção perdida à economia global até o final deste ano.
Nos últimos meses, no entanto, a perspectiva quanto a economia da região melhorou. “Uma questão que tem ajudado é a melhora da crise energética e os auxílios do governo”, explica o analista da XP, referindo-se a medidas de incentivo para ajudar famílias vulneráveis. Na Alemanha, por exemplo, o governo criou um pacote de até 13 bilhões de euros em 2022 para auxiliar cidadãos e empresas atingidos pelo aumento nos preços da energia.
Assim, cada cidadão recebeu 300 euros em pagamento único e as empresas com alto gasto de energia, um valor na casa dos 3 bilhões de euros em 2022. Para 2023, a expectativa é de que o auxílio alcance 42,5 bilhões de euros.
Além disso, a reabertura da China ajudou a alavancar a exportação dos países europeus e deve também aumentar a receita do bloco, com países como França considerados principais destinos turísticos no verão para chineses.
Mesmo com esta melhora, Nobre não descarta uma recessão. “Hoje, estamos em uma economia em processo de reajuste. A perspectiva é de uma desaceleração e até mesmo uma recessão moderada nos Estados Unidos e na Europa como consequência da crise energética e dos juros elevados”, explica, afirmando que provavelmente o Reino Unido, afetado também por questões econômicas, deve entrar em recessão.
A taxa de inflação ao consumidor (CPI) acumulou uma alta considerável nos últimos meses e chegou ao patamar dos 10,6% na zona do euro em outubro de 2022. Somada a inflação com a crise energética, os preços no final de 2022 chegaram a ficar 41,5% mais caros do que no mesmo período do ano anterior, quando não havia o cenário de guerra.
Nos Estados Unidos, a inflação atingiu 9,1% em julho de 2022 — considerada atípica para o país e a maior em 41 anos. No Reino Unido, a inflação atingiu a maior taxa desde 1981, chegando os 11,1% em novembro, segundo o escritório britânico de estatísticas.
Outra dado que ganhou destaque nos últimos meses nos EUA foi a taxa de juros, que atualmente está na faixa dos 4,5% e 4,75% ao ano — uma ofensiva do Federal Reserve (Fed) para conter a inflação no país, considerada uma das mais altas historicamente.
Os BCs na Europa foram pelo mesmo caminho. Na Zona do Euro, a taxa básica ficou em 2,5% e em 4% no Reino Unido.
Nesse cenário, o câmbio dos países emergentes sofreu com o conflito na Europa. Historicamente, em momentos de incerteza econômica, os investidores globais tendem a aportar em economias mais seguras, favorecendo o dólar e levando moedas de emergentes, como as da Colômbia e do Chile, a se desvalorizarem.
Países como Rússia e China, por exemplo, também deixaram de usar apenas o dólar como reserva de valor – a Rússia, claro, por causa também das sanções impostas ao país. Isso fortaleceu a sua posição em ouro e outros ativos para não depender dos Estados Unidos.
Brasil frente à guerra na Ucrânia
O maior impacto no Brasil foi o aumento do preço do petróleo brent, referência para a política de preços da Petrobras (PETR4), afetando o consumidor final e encarecendo a produção. Com um aumento que beirou a casa dos 40%, o preço do petróleo pressionou ainda mais a inflação, que já era uma preocupação para o país em decorrência da pandemia.
A inflação chegou ao patamar de 12% em abril de 2022, mas caiu de forma gradativa – muito em função da desoneração do preços dos combustíveis -, enquanto o Banco Central (BC) aumentava a taxa de juros. O IPCA acabou fechando o ano em 5,79%. Mesmo com o recuo, a taxa ainda ficou acima da meta estabelecida pelo órgão regulador.
Desta forma, a taxa básica de juros do país, a Selic — a 13,75% ao ano —, precisou permanecer em altos patamares nos últimos meses. Hoje, não há previsão de que a taxa caia antes do fim do ano, mesmo com a pressão do Governo Federal nas últimas semanas.
A balança comercial do país sofreu um impacto inicial com a guerra na Europa, com a dificuldade de importar produtos, como fertilizantes, mas a situação se normalizou. Nas exportações, no entanto, o impacto foi positivo, ajudando na geração de estoques do Brasil.
Segundo o analista da XP, como as empresas lidaram com a escassez de alguns produtos, entre os quais os fertilizantes, no início da Guerra da Ucrânia, decidiram se precaver quando tiveram acesso ao insumo, comprando em abundância. Com a normalização das importações, o acesso aos produtos voltou aos patamares antigos — gerando um estoque de produtos como fertilizantes para alguns produtores.
Para a XP, há um saldo positivo na balança comercial de US$ 65 bilhões em 2023, impulsionado pela guerra e também pela China, maior parceria comercial do Brasil.
Câmbio e a bolsa
Embora a Guerra seja citada como um fator de desequilíbrio nos comunicados do Copom ao mercado — tanto pela influência do petróleo, quanto o encarecimento dos alimentos frente à falta de fertilizantes —, o Brasil não sofreu tanto em termos de câmbio, por se beneficiar da alta das commodities.
Assim, em comparação com outros países, para Nobre, o Brasil acabou aumentando a atratividade frente a outros países emergentes. Nos Estados Unidos, a guerra somada à inflação e o aumento dos juros levaram a perdas das bolsas em Wall Street. O índice S&P 500, por exemplo, registrou queda de 25% em 2022.
Já em território nacional, o conflito não trouxe tantos impactos para a bolsa brasileira, que já estava com ações descontadas. Mesmo assim, setores considerados de crescimento foram os mais prejudicados, já que eles demandam capital. Com os juros altos, o endividamento se torna mais caro. Ações de logística, como Sequoia (SEQL3), e construção, como a Tenda (TEND3), registraram quedas consideráveis desde o início da Guerra na Ucrânia. A primeira, de 79%, e a segunda, de 64%,
Assim, os setores que se beneficiariam com a guerra na Ucrânia foram os defensivos, como saúde, consumo básico, commodities e utilities, que repassam a inflação para os seus produtos. Alguns dos papéis que mais se valorizaram com a alta foram Enauta (ENAT3) e SLC Agrícola (SLCE3). Blue chips como Vale (VALE3) e Petrobras (PETR4) continuam como porto seguro na crise na Europa.
E como se comportou a bolsa e o dólar nesse ano de conflito na Europa? Veja no gráfico abaixo:
Ucrânia: exportação de grãos recua com possibilidade de fim do acordo com Rússia
A Ucrânia enfrenta outra crise com a desaceleração das exportações de grãos nas últimas semanas. As exportações de grãos da Ucrânia desaceleraram acentuadamente nas últimas semanas, com atrasos nos embarques e preocupações com o prazo de vencimento do acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU) para o escoamento de alimentos do Mar Negro. “Poucos comerciantes estão dispostos a vender grãos ucranianos no momento, a menos que tenham mais transparência sobre a extensão do acordo de grãos”, disse o diretor consultoria agrícola do Mar Negro SovEcon, Andrey Sizov. O tratado que definiu o corredor de embarques deve expirar em 19 de março.
A invasão da Ucrânia pela Rússia, que está próxima de completar um ano, prejudicou os embarques de trigo e óleo de girassol inicialmente, gerando preocupações de que houvesse uma crise global de alimentos. As exportações só voltaram aos níveis pré-guerra no fim do ano passado, depois que Rússia e Ucrânia aderiram a um pacto apoiado pela ONU para retomar as exportações de alimentos pelos portos do Mar Negro.
Em relatório, o banco alemão Commerzbank ressaltou que o Ministério das Relações Exteriores da Rússia divulgou um comunicado na última sexta-feira (17) criticando o acordo e o fato de a maior parte dos grãos exportados pelo corredor humanitário, até agora, ter sido enviada para países de alta renda, enquanto os embarques para países pobres geralmente diminuíram. A nota ainda pontuava que o oleoduto de amônia Togliatti-Odessa foi bloqueado por Kiev por motivos políticos.
Em meio às turbulências e aos temores de que as tratativas não se renovem, o Centro de Coordenação Mista da Ucrânia registrou queda nos volumes embarcados de grãos, de 3,7 milhões de toneladas em dezembro para 3 milhões de toneladas em janeiro. Até 20 de fevereiro, cerca de 1,5 milhão de toneladas tinham sido embarcadas, ante 2,8 milhões de toneladas programadas. “Uma razão para isso é o ritmo mais lento das inspeções, que caíram de quase 11 navios por dia em outubro para cerca de 6 navios por dia recentemente”, ressaltou o Commerzbank.
A Associação Ucraniana de Grãos alega que a Rússia atrasa deliberadamente as inspeções de navios para desestabilizar o abastecimento. Na semana passada, 140 embarcações aguardavam inspeção contra menos de 100 no início do ano. O fundador da empresa de análise do mercado agrícola do Mar Negro UkrAgroConsult, Sergey Feofilov, disse que incerteza agravada pelos atrasos nas inspeções fez com que exportadores e comerciantes trabalhassem com um cronograma de planejamento de três a quatro semanas para sair do Mar Negro, em vez do prazo anterior de uma semana.
A preocupação com o não cumprimento dos pedidos já acordados para exportação também diminuiu o apelo do trigo ucraniano aos compradores do Oriente Médio e Norte da África, disseram analistas. Em contrapartida, as exportações russas de grãos atingiram níveis quase recordes, após uma safra robusta de trigo. Segundo o banco Commerzbank, é a oferta russa do cereal que tem contido os preços. O volume exportado do trigo russo explica porque os preços do grão mal responderam ao risco de menor oferta da Ucrânia, segundo o banco.
Assembleia Geral da ONU aprova nova resolução pelo fim da guerra
A Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou ontem (23) uma nova resolução pedindo o fim da guerra na Ucrânia. O texto foi aprovado por 141 votos. Outros 32 países votaram contra a resolução e sete se abstiveram. O Brasil foi o único país dos Brics (bloco econômico composto também por Rússia, China, Índia e África do Sul) a votar favorável. A aprovação ocorreu na véspera do conflito completar um ano.
A resolução, como um todo, pede o fim da guerra, o respeito à soberania ucraniana, à integridade física de civis e às convenções internacionais relativas ao tratamento de prisioneiros de guerra. O texto também conclama às duas partes e à comunidade internacional que busquem formas de mediar a paz, além de ressaltar que o fim da guerra fortaleceria a harmonia e segurança internacionais.
O documento ainda aponta os efeitos da guerra na segurança alimentar, energética e nuclear, pedindo uma solução imediata em conformidade com os princípios previstos na Carta da ONU, o tratado que estabeleceu as Nações Unidas. Além disso, enfatizou a necessidade dos responsáveis por crimes de guerra enfrentarem processos internacionais.
Antes da votação da resolução, na abertura da sessão, o secretário-geral da ONU, António Guterres, destacou os efeitos da guerra. Ele afirmou que 40% dos ucranianos precisam de ajuda humanitária e que a disputa já deixou 8 mil mortos. O documento não tem força legal, apenas um peso político.
A Rússia fez críticas à postura dos países ocidentais sobre a guerra na Ucrânia. Para os russos, a crise está sendo estimulada pelo ocidente que, na visão deles, tem conduzido uma “guerra híbrida” que desencadeou em uma crise alimentar. Na visão de Moscou, a resolução aprovada não ajudará a encerrar o conflito. Existe, segundo eles, uma “russofobia” crescente. A Rússia alega ainda que as sanções impostas ao país atingem mais duramente os países em desenvolvimento.
Com Estadão Conteúdo e Agência Brasil
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