Nas últimas horas, a proposta de criação do Sur, a moeda comum entre Brasil e Argentina, causou ruídos no mercado financeiro. Contudo, a ideia apresentada pelos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Alberto Fernández não é a de criar uma espécie de “euro latino” por enquanto, mas sim de contar com uma moeda que facilite o comércio entre os países do bloco. Assim, o real e o peso argentino seguirão normalmente na economia dos seus respectivos países.
“Estamos tentando trabalhar para que os nossos ministros da Fazenda, cada um com a sua equipe, possam nos fazer uma proposta de comércio exterior e de transações entre os dois países que sejam feitas em uma moeda comum a ser construída com muito debate e muitas reuniões”, disse Lula à imprensa durante um evento na Casa Rosada, sede do governo argentino, nesta segunda (23).
Em um artigo publicado no jornal argentino Perfil, Lula e Fernández argumentaram que a ideia visa reduzir a vulnerabilidade externa dos países para operações financeiras e comerciais. Contudo, para os especialistas ouvidos pelo Suno Notícias, essa parceria pode beneficiar mais os hermanos do que os brasileiros.
Igor Barenboim, sócio e economista-chefe da Reach Capital, destacou que o País vizinho tem muito a ganhar com essa iniciativa: “A Argentina está sem moeda funcional, sem reservas nem crédito no mercado internacional”.
Na visão do especialista, caso o projeto vingue, os argentinos contarão com o crédito brasileiro no mercado internacional e não precisarão adquirir dólares americanos para realizar negociações com comerciantes nacionais — atualmente, a Argentina tem baixa reserva de dólar, o que dificulta transações.
“Para o Brasil é interessante ter um esquema de pagamentos/creditício que estimule as nossas exportações para a Argentina. No auge do Mercosul, o Brasil correspondeu a 40% das importações dos hermanos. Hoje, voltamos quase para o patamar pré-Mercosul de 20%. Se o Brasil quer se reindustrializar, precisa arrumar clientes, e eles podem ser os argentinos e outros sul-americanos”, complementou Barenboim.
Lenon Rissardi, especialista em investimentos e sócio da GT Capital, destacou que a moeda comum pode melhorar a relação comercial entre os países, mas pode causar uma perda da autonomia econômica dos países que entrarem nesse barco. “Porém, como pouco se sabe sobre a moeda, não há ainda fatos para uma melhor visão dos aspectos negativos da criação da Sur”, ponderou.
Fim do real ou um dólar latino? Nem um, nem outro
A história da moeda comum entre Brasil e Argentina ganhou força no domingo (22), quando o jornal Financial Times antecipou esses estudos e afirmou que a iniciativa poderia criar o segundo maior bloco deste tipo do mundo, atrás apenas da Zona do Euro.
Sergio Massa, ministro da Economia da Argentina, disse ao jornal britânico que os estudos também compreenderiam questões fiscais e o papel dos bancos centrais de ambos os países — o que deu início aos ruídos do caso.
Já Fernando Haddad, ministro da Fazenda do Brasil, afirmou que essa nova moeda virtual não pretende colocar um fim no real nem no peso argentino. Assim, em termos práticos, ela não seria uma espécie de “euro latino” nem uma moeda única, e sim uma moeda comum.
Nicolás Gadano, economista e ex-gerente geral do Banco Central da Argentina, disse ao Suno Notícias que a discussão desse tema para os hermanos está atrelada ao desejo local de “ter uma moeda”, tendo em vista a crise econômica que o nosso vizinho atravessa. Lá, a inflação dos últimos doze meses fechou em alta de 94,8%.
“Os anúncios e a fantasia em torno deles, vistos pelo nosso espectro, é de que o projeto possa ser uma ferramenta para estabilizar a economia argentina. Ao adotar a moeda dos nossos vizinhos ou uma moeda comum, pode ser uma ferramenta para uma estabilização econômica e uma redução brusca da inflação argentina”, disse Gadano.
Já existem mecanismos para que os países não precisem de dólares em negociações bilaterais. Se tudo isso, que tem um nome tão ambicioso de moeda comum, se traduz simplesmente em um esquema para pagar o comércio, é como se fosse um balão enorme de aniversário que se desinfla e fica murcho.
“Na Argentina, existem expectativas enormes sobre esses anúncios. O Governo está desesperado para conseguir dólares ao nosso Banco Central”, entregou o economista.
Na conversa com jornalistas, Lula e Fernández destacaram que o debate sobre a moeda comum encontra-se em estágio inicial e seguirá na pauta dos países.
Proposta de moeda comum não tem relação com moeda nacional, diz Galípolo
O secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Gabriel Galípolo, afirmou que o que está sendo proposto com o acordo bilateral entre Argentina e Brasil é o início de um estudo de moeda única para trocas comerciais entre os dois países diante da restrição de acesso do país vizinho ao dólar. Em entrevista à GloboNews, Galípolo refutou, como fizeram outros integrantes do governo desde o domingo, que a ideia seja a criação de uma moeda única, como o euro, que substituiria o peso e o real.
“O ponto principal é a dificuldade que existe de aceitar pesos no comércio internacional. O problema hoje no comércio entre Brasil e Argentina é depender de moeda de um terceiro país”, disse Galípolo.
“Restrição de dólar pode comprometer comércio entre Brasil e Argentina e com a região. Estamos construindo soluções para recuperar espaço que perdemos com restrições de acesso da Argentina”, completou o número 2 da Fazenda.
O secretário-executivo reforçou que a ideia não é depender da baixa aceitabilidade do peso, mas criar uma nova forma de pagamento, que funcionaria como uma espécie de clearing. Ele também repetiu, como mostrou o Broadcast mais cedo, que o financiamento para importadores argentinos seria apenas para a compra de produtos brasileiros e condicionado a garantias reais. “A algum tipo de ativo que tenha valor no mercado e seja conversível em reais ou outra moeda conversível”, explicou.
Indústria brasileira e crédito
Gabriel Galípolo disse ainda que a indústria brasileira vem sentindo a ausência de apoio de crédito para vender para a Argentina. “Essas indústrias vêm sentindo a perda de importância relativa na relação comercial com esse nosso parceiro estratégico”, afirmou. “Procuramos uma forma sobre como o Estado poderia atuar justamente para destravar essas relações entre os países”, acrescentou.
Segundo o secretário-executivo, é preciso primeiro estruturar o trabalho para tentar superar as restrições de divisas internacionais para o principal parceiro do Brasil, inicialmente com crédito à exportação com estrutura de garantias e depois detalhar uma ideia de uma clearing. “Tentamos fazer com que fosse algo o mais próximo possível de uma operação estruturada, para que seja uma operação mais assemelhada o possível com uma operação de mercado, justamente para precaver de todos os riscos existentes”, explicou.
Ele fez estes comentários à GloboNews direto da Argentina, onde acompanha o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
Galípolo foi questionado sobre se Lula não teria se precipitado sobre alguns negócios que poderiam ter sido acertados diretamente pelos industriais dos dois países. O secretário-executivo brincou com a hierarquia dos cargos: “O presidente jamais se precipita. A equipe econômica é que se atrasa, eventualmente”, disse, rindo.
O secretário disse que, antes de anunciar a intenção de se criar uma moeda comum com o país vizinho, foi consultar entidades de classe, em especial da indústria e da manufatura, para estudar a viabilidade desses mecanismos planejados pela Fazenda para garantia e crédito para a exportação. “Para o exportador brasileiro, o risco é não receber em reais por causa da conversibilidade. O que estamos tentando fazer é superar esse risco.”
No início, de acordo com Galípolo, a ideia é solicitar garantias para esse crédito para exportação brasileira/importação argentina. Depois, a intenção é pensar em sistemas de compensação entre esse comércio, que precisa de uma unidade de conta e de um meio de troca obrigatoriamente. “A ideia é ter uma moeda comum, que é uma moeda com a qual, virtualmente, se poderá fazer a clearing, ou seja, o saldo final desse comércio. Isso é essencial. Se eu tiver de fazer via dólares, enquanto meio de pagamento, vou estar sempre condicionado e determinado pela política monetária norte-americana”, disse, explicando rapidamente que não há nada de errado nessa posição dos Estados Unidos, mas que é preciso evitar limitantes para o Brasil.
Com Estadão Conteúdo