O Federal Reserve (Fed), o Banco Central dos Estados Unidos, manteve na última semana as taxas de juros entre 0% e 0,25% ao ano. Isso mesmo com uma inflação cada vez mais elevada.
Entretanto, a instituição monetária central americana embaralhou as cartas ao anunciar que, em 2023, aumentará duas vezes as taxas de juros.
Esta mudança de rumo por parte do Fed teve efeitos imediatos nos mercados financeiros.
As taxas da parte curta da curva de rendimentos dos EUA aumentaram, enquanto, de forma surpreendente, as taxas de médio e longo prazo caíram cerca de 15-20 pontos base.
Já o T-Note, o título do Tesouro dos Estados Unidos com vencimento em 10 anos, provavelmente o ativo mais líquido do planeta, caiu para menos de 1,5%.
Uma “barreira” de juros que parece cada vez mais difícil superar.
Isso apesar do crescimento da inflação (que em 2021 é estimada em 3,4% nos Estados Unidos, longe dos 2% considerados aceitáveis pelos bancos centrais), e o rápido melhoramento das condições econômicas e uma campanha de vacinação que avança a todo vapor.
No entanto, contra todas as expectativas, o rendimento dos títulos do Tesouro de 10 anos parece literalmente congelado.
Nos manuais de economia aprendemos que os juros dos títulos públicos se movem na direção oposta aos preços.
Portanto, se os rendimentos não subirem ou mesmo baixarem, significa que a demanda por títulos é robusta.
Embora o Fed esteja caminhando para o aperto monetário e antes disso para o tapering (redução dos estímulos), essa manutenção em 1,5% das taxas de juros demonstram que há muita gente disposta a comprar títulos do Tesouro.
Quais são, então, os principais motivos que ajudam a entender esse “estranho caso dos títulos do Tesouro dos EUA”?
1) Se os juros subirem, a dívida gigantesca dos EUA pode se tornar uma bomba
Embora todos estejam apostando em juros mais altos dos títulos do Tesouro dos Estados Unidos de curto prazo, há alguns pontos cruciais a serem lembrados.
De acordo com uma uma estatística de Peak Capital Management sobre o impacto que os níveis de dívida poderiam ter sobre o orçamento nacional em caso de um aumento das taxas de juros, um aumento de 3% nos rendimentos empurraria o custo da dívida dos EUA de US$ 303 bilhões (cerca de R$ 1,5 trilhão) para US$ 975 bilhões (cerca de R$ 6 trilhões).
Nesse caso, os Estados Unidos gastariam mais com o serviço da dívida do que com a defesa, ou quase o equivalente ao valor do financiamento da previdência social.
O Fed está obviamente ciente desse cálculo bastante simplista e de como a situação poderia se tornar perigosa se os rendimentos aumentassem drasticamente. E, por isso, também não exagera com a alta nos juros.
O Banco Central dos Estados Unidos está disposto a fornecer o máximo de liquidez possível, comprando diretamente títulos do Tesouro para conter os rendimentos.
O Fed (embora seja independente) e o Tesouro Nacional nunca estiveram tão intimamente ligados como hoje. As decisões não são mais tomadas individualmente.
Com os níveis atuais de dívida e gastos, o Fed ou o Tesouro dificilmente permitirão que as taxas voltem a 5%.
Em teoria, uma solução seria aumentar a inflação (o que reduziria automaticamente o peso da dívida). Mas é fácil constatar que isso não pode ser feito sem aumentar as taxas de juros.
2) Efeito baby boomers
A geração dos Baby Boomers, nascidos entre os anos 1950 e 1960, tem uma força econômica incomparável.
Em 1998, a família média na faixa etária de 52-70 anos tinha um patrimônio líquido de US$ 747.600, enquanto as famílias na faixa etária de 20-35 anos tinham um patrimônio líquido médio de US$ 103.400.
Nas últimas duas décadas, os baby boomers viram seu patrimônio líquido médio crescer para US$ 1,2 milhão. Uma geração que está envelhecendo rapidamente e está doida para comprar títulos da dívida dos Estados Unidos.
E esse aumento na demanda acaba impactando naturalmente as taxas de juros.
3) A demanda externa
Também não devemos esquecer a forte demanda por títulos americanos vindos do exterior.
Especialmente nas áreas que têm taxas de juros ainda mais baixas do que as americanas.
O governo japonês, por exemplo, nunca teve vergonha de demonstrar amor pelos títulos do Tesouro dos Estados Unidos.
O país asiático tem adotado uma política de taxas de juros de curto prazo negativas, com taxas de longo prazo próximas de zero.
4) A linha coordenada de bancos centrais
É preciso também considerar que os Bancos Centrais do mundo inteiro começaram a atuar de forma coordenada as decisões sobre taxas de juros.
O Banco Central Europeu (BCE), por exemplo, começou a usar a ferramenta de orientação progressiva em julho de 2013, quando o Conselho da instituição monetária central europeia informou que as taxas de juro deveriam permanecer baixas por muito tempo.
O Fed, por sua vez, tem comunicado continuamente orientações futuras na mesma linha nos últimos meses, seja por meio de atas, do Livro Bege ou de Jerome Powell e outros membros da instituição.
5) Compras do Fed
Difícil de vender se o Fed estiver comprando do outro lado.
O banco central dos EUA aumentou significativamente as compras de títulos do Tesouro como parte de um esforço mais amplo para conter o impacto econômico da pandemia do novo coronavírus (Covid-19).
Na verdade, em dólares, o Federal Reserve nunca teve tantos títulos do Tesouro como nesse momento histórico.
Desde meados de março de 2020, o Fed embarcou em uma política agressiva de flexibilização quantitativa para manter as taxas de juros baixas e injetar liquidez na economia.
Os títulos de longo prazo e os títulos do Tesouro (excluindo títulos indexados à inflação) respondem por mais de dois terços da expansão do balanço do Fed desde 18 de março de 2020.
Um aumento de 98% em pouco mais de um ano.
Em comparação, o Fed aumentou sua carteira de títulos do Tesouro em apenas 116 bilhões, ou cerca de 25%, entre 5 de dezembro de 2007 e 24 de junho de 2009, no momento da crise dos subprime.
Durante esse período, o Fed incrementou sua carteira total em US$ 1.200 bilhões, de US$ 920 bilhões em dezembro de 2007 para US$ 2.100 bilhões em junho de 2009.
Short Squeeze sobre títulos abaixa os juros
Além dessas cinco razões, os juros dos títulos públicos dos Estados Unidos continuam baixo por causa de uma operação gigantesca de short squeeze que está ocorrendo no mundo inteiro.
Por causa do excesso de demanda muitos investidores ficaram sem T-Bones. Os fundos de hedge cheiraram o possível negócio e começaram a operar vendidos sobre os títulos.
Em seguida, os investidores que seguem as tendências do mercado liquidaram suas posições curtas.
Os investidores de longo prazo começaram a comprar, principalmente alguns governos asiáticos.
E o ponto de equilíbrio foi alcançado com um rendimento de 1,45%, tornando esse limite um indicador crucial para entender se a alta dos títulos vai se acelerar.
Se os rendimentos caírem abaixo desse nível, os operadores de tendência poderiam ser forçados a liquidar o resto das suas posições vendidas, empurrando o rendimento para 1,20%.
Juros magistra vitae
Se diz que a histora magister vitae. A história é professora da vida. E os juros dos títulos públicos dos Estados Unidos também.
De 1926 a 1964, por quase 40 anos, o rendimento dos títulos do Tesouro de 10 anos permaneceu essencialmente estável entre 2% e 4%.
Isso porque, em primeiro lugar, a Grande Depressão foi maciçamente deflacionária.
Em segundo lugar, quando os Estados Unidos entraram na Segunda Guerra Mundial, o governo limitou os rendimentos para que pudesse tomar dinheiro emprestado para financiar o esforço de guerra.
Até a segunda metade da década de 1960, os rendimentos não saíam desse túnel.
Não estamos à beira de uma nova guerra mundial. No entanto, devemos lembrar que a crise provocada pelo coronavírus foi histórica do ponto de vista do dinheiro gasto, tanto pelo Fed quanto pelo governo dos Estados Unidos (e o mesmo vale para outros países).
As “cicatrizes” econômicas da crise não vão desaparecer rapidamente e podem até, contra todas as expectativas, manter os juros dos EUA em 10 anos em um nível baixo, entre 1% e 3%, por muitos anos.
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