Inflação: ‘bela adormecida’ da economia mundial acorda diante do boom das commodities
(Com Carlo Cauti) – A “bela adormecida” da economia mundial, a inflação, parece ter voltado de vez. Após anos em falta, alta dos preços está levantando novamente a cabeça graças ao boom dos preços das commodities.
Do arroz ao cobalto, do trigo ao paládio, do níquel ao minério de ferro, muitos dos ingredientes básicos de nossas mesas e da indústria global parecem ter engatado o turbo. E muitos analistas estão apostando em um novo super-ciclo das commodities.
Para o Goldman Sachs, esta alta durará alguns anos. E vai afetar profundamente — como costuma acontecer quando os preços das commodities sobem — o destino dos mercados e do equilíbrio geopolítico do planeta.
De acordo com o banco, o conforto relativo mantido pelo Banco Central (BC) até agora pode deve entrar em declínio “declínio devido à contínua inflação dos preços das commodities importadas em dólar, que não foi neutralizados por um real mais forte, aumento do risco político, risco fiscal persistente e aumento das expectativas de inflação de curto prazo.”
O despertar dos preços das commodities, lido em números, impressiona. Os de alimentos estão em seu nível mais alto nos últimos sete anos. Em dólares, o trigo aumentou 31% desde janeiro de 2020. A soja 49%. O quilo de açúcar no Rio de Janeiro custa hoje 64% a mais que há um ano. O tofu na Indonésia cresceu 30%.
Para os minerais, a mesma coisa. O cobre atinge seu ponto mais alto, com uma alta de 50% em pouco mais de doze meses. As terras raras dobraram desde novembro. Até a cotação do petróleo, mesmo com a tendência a descarbonificação do planeta, começou a subir em janeiro (+33%).
O mundo inteiro estava pedindo isso há alguns anos. E agora que realmente corre o risco de acontecer, os mercados — pegos um pouco de surpresa — estão vacilando. A inflação, a bela adormecida da economia mundial, está levantando a cabeça.
Os bancos centrais — especialmente o Banco Central Europeu (BCE) — vêm tentando há anos reanimá-la de todas as maneiras. De repente, um inesperado príncipe encantado a acordou: o alto custo de vida ressurgiu do nada graças ao boom dos preços das commodities.
As causas do boom
A recuperação da demanda após os bloqueios de 2020 é apenas uma explicação para a arrancada. Secas, mudanças climáticas e colheitas ruins aumentaram o valor dos produtos agrícolas.
Para sustentar os aumentos há, no entanto, um conjunto de outras causas que contribuem. Entre elas, os estímulos fiscais e monetários de governos e bancos centrais, perspectiva de redistribuição global de receitas e a transição rumo a energia limpa que vai aumentar a demanda por commodities.
A alta também reverbera a retomada econômica da China. Os olhos insaciáveis do dragão asiático, um dos únicos países a registrar crescimento em 2020, apesar de impactos causados pela pandemia do novo coronavírus (Covid-19), chamou a atenção do mercado.
“Isso levanta a questão de saber se o momentum será mantido. No entanto, com os estoques de alimentos e energia, ou estáveis ou em queda em 2020, uma reversão brusca das tendências recentes parece improvável”, avaliou o BNP Paribas.
Cobalto, manganês, lítio e grafite colocam-se como componentes vitais das baterias do futuro, as terras raras são essenciais para os parques eólicos e o Ministério do Interior dos Estados Unidos compilou uma lista de 35 minerais estratégicos para o futuro da energia fotovoltaica nacional.
O problema não é apenas o boom da demanda. O mundo das matérias-primas vem de uma década de preços muito baixos. E a falta de investimentos nos últimos anos em extração e pesquisa pode criar problemas também na quantidade da oferta.
Os vencedores
Como segue o protocolo, há sempre aqueles que ganham com certa mudança de cenário. Nesse caso, são, em grande parte, as companhias exportadoras.
“Podemos ver a valorização da commodity mais negociada do mundo, que é o petróleo”, disse Luiz Francisco Caetano, analista de investimentos da Planner Corretora.
Enquanto isso, o minério de ferro que nem “chegou a cair muito” foi às alturas com o início da retomada econômica mundial.
Portanto, não assusta o fato de que as companhias de siderurgia Gerdau (GGBR4), CSN (CSNA3), Usiminas (USIM5) e Ferbasa (FESA4) obtiveram seus maiores números de vendas, lucro e caixa do setor no quarto trimestre de 2020, segundo pesquisa realiza pela Economatica.
O lucro líquido consolidado das quatro empresas do segmento de siderurgia da Bolsa de Valores de São Paulo (B3) atingiu R$ 6,37 bilhões.
Com os preços inclinados e a recuperação do mercado em andamento, “tudo indica que, em 2021, esse lucro será ainda maior”, ressaltou Luiz Francisco Caetano.
A análise foi a mesma para as petrolíferas PetroRio (PRIO3), Enauta (ENAT3) e 3R Petroleum (RRRP3), que devem se beneficiar da tendência altista do produto, enquanto Petrobras (PETR4), embora bem posicionada, ainda deve seguir pressionada pela sina de estatal, salientou o analista.
O fardo da inflação
Quanto e quando o aumento das commodities pesará sobre a inflação e as carteiras de consumo? Os preços na Europa em janeiro subiram “apenas” 0,9% em janeiro. Mas muitos analistas dizem que a comparação com 2020 pode elevar esse número rapidamente, com o risco de um surto próximo a 2,5% no final do ano.
O Federal Reserve (Fed), por enquanto, dá de ombros. E mesmo o BCE não parece muito preocupado. As taxas de juros da União Europeia (UE) aumentaram muito menos do que as taxas de juros dos EUA (em fibrilação por medo de que o plano de recuperação de US$ 1,9 trilhão de Joe Biden superaquecesse a economia). E ainda que um efeito de contágio dos Estados Unidos fosse incompatível com a recuperação, o risco de consolidação da inflação acima de 2% é ínfimo.
A volatilidade do Produto Interno Bruto (PIB) nos últimos trimestres torna difícil entender como os preços irão se movimentar no longo prazo . Teremos uma ideia mais clara apenas quando as coisas derem certo. eles serão liquidados. Mas é claro que a atenção deve ser mantida, porque o aumento consolidado das matérias-primas pesa sobre a inflação e as taxas de mercado.
Os mercados, a julgar pelos surtos dos últimos dias, parecem menos otimistas. As commodities não são o único fator a impulsionar a inflação. Há gargalos no transporte e na produção que pesam nos preços.
A pandemia criou um caos na logística mundial. O espaço para mercadorias na carga e nos porões das aeronaves reduziu drasticamente porque os voos comerciais quase desapareceram, o preço do aluguel de contêineres quadruplicou, em vários portos dos Estados Unidos há listas de espera às vezes longos dias para descarregar o material nas docas, chips (especialmente para carros) estão em falta porque o boom na demanda pegou os produtores que cortaram a oferta de surpresa.
Todos os obstáculos que aumentam os custos de processamento e que muitas empresas poderão baixar em breve diretamente para os consumidores.
A incerteza dos mercados de ações hoje em dia é resultado do temor de que a inflação desencadeie uma cadeia de altas das taxas — as dos títulos do Tesouro dos EUA de 10 anos saltaram de 0,65% em outubro para 1,635% hoje – capazes de desencadear uma fuga de liquidez para os títulos.
“Neste contexto, o valuation (avaliação de valor) de empresas focadas no rápido crescimento de receitas (em detrimento do lucro) e que possuem múltiplos elevados, tende a ser mais penalizado. Isso ocorre, pois grande parte do valor dessas companhias precifica as oportunidades de expansão no longo prazo, que em um cenário de juros mais altos no futuro, se tornam menos atrativas”, explicaram os analistas Vinicius Araujo e Gustavo Senday, da XP Investimentos em relatório.
Também está colocando em dificuldade os bancos centrais empenhados em apoiar a economia na era de Covid. Mas o BCE e o Fed não têm alternativa. E devem continuar com sua política acomodatícia porque o risco de desaceleração do crescimento é hoje ainda maior do que de aumento de preços.
Os riscos geopolíticos
O outro lado do aumento das commodities e da ressurreição da inflação são suas consequências geopolíticas. O alto custo de vida é historicamente a centelha que desencadeou guerras e revoluções. E muitos países já começaram a correr para se proteger para desarmar a bomba-relógio social do boom dos preços.
Argentina e Rússia moderaram as exportações de grãos para garantir suprimentos de baixo custo para o mercado interno.
Os Emirados Árabes Unidos tentaram limitar a lista de alimentos.
O presidente Recep Tayyip Erdogan ordenou uma investigação para entender a razão do salto de 18% na inflação de alimentos na Turquia.
Os agricultores indianos manifestaram em Nova Delhi contra uma reforma agrícola que eles acreditam que visa apenas baixar os preços.
Na Nigéria — onde 50% da renda familiar é gasta em alimentos — o custo de vida registrou o maior aumento nos últimos 17 anos. E um dos dois fatores do alto custo de vida e do colapso do preço do petróleo — a maior riqueza do país — causou tumultos nas ruas e assaltos a supermercados.
As matérias-primas também se tornaram uma arma diplomática delicada: há meses a China ameaça um embargo à exportação de terras raras para os Estados Unidos.
Biden, que acaba de assumir o cargo na Casa Branca, assinou uma ordem executiva para recriar uma cadeia de abastecimento dos EUA desses minerais que agora se tornaram tão caros quanto o fogo.
A bela adormecida, também conhecida como inflação, parece realmente ter acordado. E sua história, para o equilíbrio do mundo, realmente corre o risco de não ter um final feliz.