Somente em 2020, com a pandemia, o preço do frete marítimo subiu quase 500%, iniciando o ano de 2022 com custo 4,7 vezes maior, segundo dados da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Atualmente, 90% das movimentações do comércio internacional são feitas pelo mar.
O cenário se soma ao contexto de inflação em alta com pandemia e o encarecimento da cadeia de suprimentos (supply chain). Deixou tudo que vinha pelo mar ainda mais caro. Contudo, em 2022, o impacto nos preços dos produtos que dependem do frete marítimo aumentou ainda mais.
O quadro foi fortemente influenciado pela parada do Porto de Xangai, que tem uma fatia relevante do tráfego marítimo do mundo. Isso ocorreu em meio às decisões do governo vhinês nas últimas semanas, após uma certa resistência em realizar um lockdown em Xangai. A decisão, porém, não é ‘central e unilateral’ como a maioria das pessoas pensam, explica Rodrigo Zeidan, professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral.
“O governo que resistiu ao lockdown foi o de Xangai. O que temos que entender é que a China não é supercentralizada como as pessoas imaginam. Shenzehen, sudeste do país, é mais relevante em comercio internacional e teve lockdown decretado antes de outras cidades. Xangai achou que ia tocar o barco sem fazer lockdown. Quando as coisas saíram de controle, o governo central, por mais que não tenha interferido, afirmou que a autonomia dada não foi bem aproveitada”, afirma.
O economista explica que o cenário atual deve ter um impacto relevante nos próximos meses, e com uma duração ainda extensa.
“Acho que teremos um ano de impacto. Não é só no porto [de Xangai] que as pessoas não podem ir embora. Você tem as regras centralizadas, os produtos para chegarem aos portos precisam de caminhoneiro. Há uma logística interna toda em xeque. Você tem um problema de logística chinês, que vai muito além do porto, que é completamente descentralizado. Qualquer caso de Covid hoje ‘para’ uma empresa. O governo vai dobrar a política de Covid zero a qualquer custo”, afirma.
O economista, que concedeu entrevista ao Suno Notícias direto da China, observa que o cenário de inflação global que é visto em praticamente todos os países não é vislumbrado na economia de lá. “Há claro alguns casos de alguns produtos que de fato subiram, especialmente para produtores. O problema é que não há como medir inflação em meio ao lockdown”, diz.
O custo de produção deve ser justamente um dos pontos cruciais para deixar os tudo mais caro em outros lugares do mundo, dado o encarecimento de commodities e outros insumos.
“Esses movimentos da China impactam muito o resto do mundo de forma direta, já que a China é a maior importadora de commodities, como soja, milho e algodão. A importância da demanda chinesa para o mundo faz com que esse movimento abrupto gere um impacto enorme globalmente”, afirma Fabio Louzada, economista, analista CNPI e fundador da Eu Me Banco.
“Além disso, muitas matérias-primas passam pela China, o que faz com que multinacionais que precisam de peças chinesas sofram o impacto na produção. Como afeta a s empresas, a tendência é de que o preço suba, com a menor oferta de produtos”, acrescenta.
O especialista ressalta que o cenário atual ocasiona dois efeitos:
- Inflação alta, com os preços subindo
- Desaceleração da economia, por conta da menor geração de valor das empresas
Da mesma forma, Louzada diz que concorda com a visão de outros especialistas – como Zeidan – de que o impacto será prolongado em termos de inflação global.
“A adequação da cadeia de produção leva um tempo maior, já que, com o mundo globalizado, cada insumo chega de um país diferente. Por isso, é preciso ajustar o ‘timing’ de todos os fornecedores, para que ninguém seja prejudicado. Para cada fornecedor, tem uma negociação diferente – por isso, para retomar com força o processo, cada empresa precisar negociar com os fornecedores e adequar prazos, valores e quantidades”, analisa.
Em um relatório divulgado no início de abril, a Organização Mundial do Comércio (OMC) sinalizou que, no pior cenário possível da dissociação das economias globais e do frete marítimo em alta, o o PIB global de longo prazo poderia encolher 5%.
Veja impactos do ‘engarrafamento do frete marítimo’ em Xangai
Em relatório do Royal Bank of Canada (RBC), da última semana do mês de maio, foi constatado que um quinto da frota global de contêineres estava presa em congestionamento em vários portos. A entidade mostra que são mais de 345 navios aguardando para atracar no porto de Xangai.
O responsável pelo relatório, Michael Tran, concedeu entrevista à CNN afirmando que ‘os gargalos nas cadeias de suprimento hoje são diferentes do que eram há seis meses’.
“Há várias versões para isso, mas basicamente, antes eles estavam muito centrados nos EUA, no porto de Long Beach. O que estamos vendo agora é que esses gargalos estão se tornando globais. A guerra entre Rússia e Ucrânia causou um congestionamento muito grande na Europa, assim como os lockdowns na China no continente asiático e, claro, os gargalos nos EUA permanecem”, disse.
Com o cenário, mesmo empresas multinacionais gigantes tiveram interrupções em algumas de suas atividades em virtude do congestionamento do porto de Xangai, como a Tesla (TSLA34) e a Volskwagen – que pararam suas atividades no início de abril e agora as retomam gradualmente, segundo a agência Reuters.
De acordo com Mike Kerley, gerente de investimentos da empresa Janus Henderson, à BBC Brasil, as restrições na região afetam o fluxo do porto, acumulando contêineres e reduzindo a produtividade em cerca de 30%.
Além disso, a diminuição do número de trabalhadores portuários também prejudica a cadeia de produção.
Assim, a paralisação se soma a diversos problemas na economia global que já encarecem os preços em todo o mundo, como a escalada do petróleo com a invasão da Ucrânia.
Soluções não tão possíveis
No cenário nacional, especialistas não veem uma forma de contornar o problema no curto prazo. Até pouco tempo só havia uma empresa de cabotagem brasileira – a Log-in (LOGN3), vendida à Maersk pela Alaska Asset em meados do fim de 2021.
Um dos principais pontos citados é que a economia atualmente é muito fechada e não se tem nenhum sinal de que isso deva mudar em breve.
“O Brasil é um país extremamente fechado e tem até ideia de fazer substituição de importação. Precisamos abrir a economia. Teremos muita oportunidade com esse mundo ‘desglobalizando’, mas atualmente somos um dos mais fechados do mundo. Não vejo muita possibilidade nisso. O governo atual não é exatamente liberal e se ganhar a reeleição não vai mudar isso. Todos os candidatos não têm comércio internacional como pauta econômica. Nossa economia fechada e isolada deve seguir assim”, analisa Zeidan.
Em termos de crescimento econômico, o professor da NYU Shangai diz que o preço do frete, inclusive, abocanhou a margem de diversas empresas mesmo que em um cenário considerado positivo para maior lucratividade.
Nos aspectos regulatórios, Louzada explica que, mesmo com algumas mudanças recentes – como a aprovação do PL da BR do Mar -, é difícil prever alguma independência ou crescimento desse setor no Brasil como forma de ser mais resiliente às oscilações econômicas externas.
“Foi vetado o projeto de recriação do Reporto, que seria um benefício que desoneraria os investimentos em equipamentos e outros gastos nos portos brasileiros, retirando estímulos da cabotagem (navegação entre portos de um mesmo país ou a distâncias pequenas, dentro das águas costeiras). São necessários diversos equipamentos para realizar a recepção de produtos após a movimentação entre dois pontos portuários, deixando essa opção inviável com o alto custo”, afirma.
“Acredito que esse ponto ajudaria a criarmos uma maior independência nesse segmento. Apesar de avanços em função da ‘BR do Mar’, como trazer novas empresas de transporte de cargas na ligação entre portos. Ainda é pouco para um ambiente mais competitivo”, conclui, sobre a dependência externa do Brasil no frete marítimo.