Ford tentou criar uma cidade utópica na Amazônia; Conheça a história da Fordlândia
O anúncio do fechamento das fábricas da Ford (NYSE: F) do Brasil, realizado na segunda-feira (11), encerra uma história centenária e com passagens históricas, como a tentativa fracassada de construir a Fordlândia — uma cidade industrial para a produção de borracha na Amazônia.
A Ford chegou ao Brasil em 1919 em meio à revolução que a popularização do transporte por meio de automóveis causava no mundo. A empresa tinha pouco mais de 15 anos de existência, fundada pelo lendário empresário Henry Ford, que inventou a produção em linha de montagem na fábrica em Dearborn, EUA.
A norte-americana chegou a São Paulo com uma escala em Buenos Aires. Nossos hermanos contavam com uma unidade de montagem da Ford desde 1913 e o vácuo na importação de veículos europeus — que dominavam o pequeno mercado brasileiro — com o avanço da Primeira Guerra Mundial criou a oportunidade para a Ford aportar na Rua Florêncio de Abreu, paralela à Rua 25 de Março, no Centro da capital paulista.
Com o aporte US$ 25 mil da filial argentina, nasce a Ford do Brasil que se dedicou a montar o famoso automóvel modelo T e o caminhão TT com peças importadas.
O modelo fordista revolucionou a produção industrial global e reduziu fortemente os custos de produção. Até então os automóveis eram vistos como um artigo de luxo, mas Henry Ford conseguiu derrubar os preços ao organizar a produção em uma linha que colocava os empregados em fileiras fazendo apenas uma tarefa. Isso aumentou a velocidade de produção e diminuiu os custos.
Poucos meses após a inauguração da primeira fábrica no Brasil, a Ford produzia cerca de quatro mil unidades por mês e passou a dominar o mercado local com a comercialização de veículos por todo o País. Dois anos depois, abriu um segundo parque fabril no Brasil para aumentar a produção, aproveitando o crescimento da demanda.
Ford teve ‘Fordlândia’ na Amazônia brasileira
Com a produção acelerada, a Ford precisava garantir sua cadeia de fornecedores globais e a borracha era um problema. Afinal, todos os carros saem com quatro pneus, além do estepe, e a Ford tinha uma alta dependência de fornecedores asiáticos.
Para tentar reduzir tal dependência, a Ford, com anuência do governo norte-americano, que fazia do auxílio às empresas americanas se tornarem players globais como política de estado, viu no Brasil um centro estratégico para a produção de borracha com o látex retirado das seringueiras.
Segundo o “The New York Times”, a opção de Ford pelo Brasil se deu por conta do temor de Ford por uma proposta de Winston Churchill de criar um cartel da borracha entre os produtores asiáticos e as colônias inglesas. Dessa forma, em um movimento que agradou às autoridades brasileiras, a Ford adquiriu um gigantesco pedaço de terra na Amazônia.
Assim, em 1927, Henry Ford criou a Fordlândia, uma cidade idealizada desde o início como modelo, mas que, apesar do sonho de um dos maiores empreendedores mundiais, nunca conseguiu suprir a companhia com o látex desejado.
O local não poderia ser diferente. Em meio a selva amazônica no Pará, as margens do rio Tapajós, os gestores da Ford fundaram uma vila com cerca de 10 mil km² — equivalente a sete cidades do tamanho de São Paulo — para explorar 1,9 milhão de seringueiras da região, plantadas nos anos anteriores.
Com um investimento de cerca de US$ 2 milhões à época (cerca de US$ 31 milhões nos valores atualizados), duas mil pessoas se mudaram para a região. De acordo com o historiador Greg Grandin, autor de estudos sobre Fordlândia, o local imitava todas as nuances de uma cidade tipicamente norte-americana, com uma rua principal de comércio, casas enfileiradas projetadas na cidade de Michigan, nos EUA, calçadas e uma praça central.
Havia também hospitais, escolas, oficinas mecânicas, câmaras de gelo para armazenagem de alimentos, entre outras benesses até então raras na região.
Ford, que era contrário à ingestão de álcool, desejava uma cidade perfeita em meio à Amazônia. De acordo com o “NYT”, os gerentes americanos proibiam o consumo de álcool, enquanto promoviam jardinagem, quadrilhas e leituras da poesia aos trabalhadores do local.
O lendário empresário, porém, não contava com as diferenças culturais entre os engenheiros americanos, convocados a tocar o novo empreendimento, e os seringueiros brasileiros.
Uma distância cultural que iria se tornar o início do fim da cidade utópica do norte-americano no País.
Relógios de pontos e sirenes marcavam o expediente e a busca pela produtividade era marca registrada, o que trazia certa estranheza aos brasileiros da época, segundo Grandin.
Houve até revoltas violentas contra o modelo norte-americano de gestão. Em dezembro de 1930, um quebra-quebra generalizado tomou conta da fábrica após os trabalhadores se revoltarem com as refeições, de farinha de aveia e pêssegos enlatados, importados de Michigan, para o café da manhã, e arroz integral e pão de trigo integral para o jantar.
Menu escolhido pelo próprio Ford, diz Grandin.
Além disso, os refeitórios, projetados nos EUA, não conseguiam espantar o forte calor da selva, transformando os locais de refeição em verdadeiras saunas.
Segundo o historiador, os trabalhadores revoltados queimaram os locais de trabalho e bradaram “morte a todos os americanos”, que tiveram que sair às pressas do local. Sobrou, também, para os relógios de pontos, caminhões, tratores e carros da empresa.
A revolta só parou dias depois, com a chegada de militares à região. De acordo com Grandim, Ford não aceitou negociar e optou por demitir a maioria dos trabalhadores da planta.
Mesmo com os problemas, contudo, a Fordlândia continuava a operar para a companhia norte-americana no aguardo do início da extração em escala industrial até que, em 1930, um fungo inutilizou os seringais para a indústria.
Assim, uma nova vila foi construída anos depois em um local a cerca de 60 km de Santarém, que demandou investimentos de US$ 8 milhões à época (cerca de US$ 124,7 milhões de hoje). Mas, ali, outro fungo devastou os seringais e as dificuldades logísticas do meio da floresta começaram a inviabilizar o negócio.
Além disso, ficou claro, nos anos anteriores, que o cultivo das seringueiras próximas a Fordlândia não iria dar certo dado os problemas logísticos, diferenças culturais e até mesmo biológico, que vinha devastando as plantações monoculturais.
E, por último, também ocorreu a entrada na competição da borracha sintética feita de derivados do petróleo e das plantações asiáticas libertadas do domínio japonês com o fim da Segunda Guerra Mundial.
Assim, em 1945, Henry Ford II — neto do empresário que assumiu a montadora após seu falecimento — decidiu acabar com o empree0ndimento e devolveu a área ao governo federal. Atualmente, há apenas prédios abandonados que remetem a aventura de Ford na floresta amazônica.
Autolatina, expansão e derrocada
A partir da década de 1950, a Ford foi se expandindo no País. A histórica fábrica localizada em São Bernardo do Campo, em São Paulo, foi um marco da montadora no País e automóveis históricos, como os veículos Corcel, Pampa e Del Rey, além dos caminhões e caminhonetes -marcas da Ford no Brasil, que já contava com diversas fábricas da empresa.
Já nos anos 1980, Ford e Volkswagen decidiram se unir no país para economizar custos e, assim, começou a chamada Autolatina. Durante cerca de dez anos, a nova companhia utilizou os motores alemães e o restante das peças dos norte-americanos.
A abertura do mercado, no fim da década de 1980, deu fim ao acordo das montadoras. Assim, a Ford passou a importar também modelos para o Brasil, com destaque para as caminhonetes produzidas na Argentina.
Os anos 1990 e 2000 marcaram o aproveitamento do mercado doméstico pela Ford, que se expandiu pelo território brasileiro e abriu uma fábrica na Bahia. Era o fim da concentração industrial no Sudeste brasileiro.
Os anos seguintes, porém, foram ruins para a Ford no Brasil, que já vinha se desfazendo de ativos por aqui, como a fábrica de São Bernardo.
Dessa forma, após anos de significativos prejuízos no Brasil, intensificadas pela pandemia do novo coronavírus (Covid-19), a companhia informou na última segunda-feira (12) que fechará as fábricas de Camaçari (BA), onde produz os modelos EcoSport e Ka, Taubaté (SP), que produz motores, e Horizonte (CE), onde são montados os jipes da marca Troller.
Assim, a decisão de fechar as linhas de manufaturas brasileiras faz parte da reestruturação dos negócios da Ford na América do Sul. Em dezembro de 2020, a empresa comunicou um programa de investimentos de US$ 580 milhões (cerca de R$ 3,17 bilhões) na Argentina. Vale lembrar, contudo, que no país vizinho são produzidos veículos maiores, como picapes e SUVs, que trazem maior valor agregado e melhor rentabilidade.
Dessa forma, após cem anos, e com passagens históricas como a Fordlândia, a Ford optou por fechar as fábricas no Brasil e dar um fim no processo de produção de automóveis no País.