Nos últimos dias, o mercado ficou aflito e em choque com o risco de um possível calote da Evergrande, a segunda maior incorporadora da China. Com dificuldades de pagar sua dívida de aproximadamente US$ 300 bilhões (algo em torno de R$ 1,6 trilhão), a companhia acabou abalando a confiança do País e assustou o mundo.
Em 20 de setembro, as bolsas refletiram os problemas de liquidez da Evergrande. Naquele dia, o S&P 500 fechou em forte queda, no pior desempenho diário desde maio, O Ibovespa encerrou as negociações daquele pregão com uma baixa de 2,33%, aos 108.843,74 pontos, pressionados pelo mesmo motivo.
Apesar de ser uma incorporadora imobiliária chinesa, o mundo todo fica atento ao risco que uma possível insolvência teria. Na avaliação de alguns especialistas, o risco de calote da Evergrande poderia se espalhar pelo mundo pouco a pouco.
Dez dias depois de o caso do possível calote da incorporadora chinesa tomar conta do noticiário, as bolsas no Brasil vêm apresentando oscilações. Em setembro, o Ibovespa, por exemplo, acumulou perda de 6,57% no mês, vindo de quedas de 2,48% e 3,94%, respectivamente, em agosto e julho – no agregado trimestral, a correção negativa foi de 15.822,56 pontos.
João Vitor Freitas, analista da Toro Investimentos, lembra que setembro não foi afetado apenas pelo caso Evergrande. “Tivemos outros pontos que pesaram para o Ibovespa no mês, como o debate em torno do teto de gastos e as discussões sobre a extensão ou não de programas sociais como o auxílio emergencial, e todo o ‘taper talk’ em torno do que o Fed fará se a economia continuará a caminhar, com as próprias pernas, quando esses estímulos forem retirados (nos EUA)”, lembra. Outros fatores contribuíram para o resultado ruim — e vão dos ruídos políticos às incertezas pela retomada econômica causadas pela pandemia.
Setembro foi mais um mês no negativo para a maior parte dos fundos imobiliários. O IFIX, principal índice de FIIs da Bolsa brasileira, fechou o mês com uma baixa de 1,24%. Mas alguns ativos se destacaram e fecharam o mês no positivo. O mercado de fundos imobiliários sentiu o tranco da crise na China — mas o peso mais contundente foi o do avanço da taxa Selic.
Em 22 de setembro, o Comitê de Política Monetária (Copom) aumentou a Selic para 6,25% e indicou outro aumento na mesma magnitude para a próxima reunião. Os economistas da XP estimam que a taxa deve aumentar até atingir o patamar de 8,0% a.a. no final do ano.
A alta da taxa básica faz com que a demanda por imóveis e o acesso a credito imobiliário fique mais restrito. Dessa forma os preços dos ativos no mercado imobiliário em geral ficam mais deprimidos. Mas, segundo a XP, os FIIs permanecem atrativos. “Apesar do cenário macro desafiador, os Fundos Imobiliários continuam uma excelente alternativa para investidores que se interessam pelo mercado imobiliário e que buscam renda e valorização do seu patrimônio”, analisa a XP.
E como então a crise da Evergrande pode afetar a economia e, especialmente, o mercado imobiliário no Brasil? Primeiro, é preciso entender como começou e em que ponto está a situação da incorporadora da China – e se ela vai mesmo persistir ou aumentar como bola de neve, espalhando temor pelo mundo.
O caso Evergrande
A empresa, a segunda maior incorporadora imobiliária da China, veio a público afirmar que pode não conseguir honrar suas dívidas. Com um montante tão grande a ser pago, analistas começaram a alertar para a possibilidade de um colapso no sistema financeiro chinês, o que eventualmente também geraria problemas nos mercados e nas economias internacionais.
A companhia alegou estar sob “tremenda pressão” e estendeu o risco de calote para os próximos meses, o que derrubou as ações da Evergrande, fundada em Guangzhou, na China, mas listada na bolsa de Hong Kong.
O comunicado da companhia foi enviado à bolsa, quando a incorporadora também reportou que suas vendas mensais caíram quase 50% entre os entre os meses de junho e agosto, passando de passando de ¥ 71,6 bilhões (US$ 11 bilhões) para ¥ 38,1 bilhões (US$ 5,9 bilhões).
No documento, a companhia culpou “reportagens negativas” da imprensa pelo desempenho ruim no período – em que concorrentes do ramo imobiliário tiveram o resultado oposto, de alta nas vendas.
Além disso, a Evergrande já citou que contratou uma equipe para “avaliar a estrutura de capital do grupo e explorar todas as soluções viáveis para aliviar o problema de liquidez atual”.
Essa preocupação acontece uma vez que a China tem um papel crucial na demanda por produtos de outros países, além da exposição de bancos internacionais ao mercado chinês.
Além disso, O setor imobiliário foi um dos alicerces da China nos últimos anos, mas passou a sofrer um aperto de Pequim neste ano. O segmento ainda representa cerca de 20% da economia do país asiático. Na análise de Scott Hodgson, gestor da Galapagos Capital, “[A companhia] tem criado crises de confiança e, como resultado, vimos outros empresas imobiliárias despencar e o financiamento subir até não dar mais para continuar com o crescimento”.
Ainda segundo o gestor, a derrocada do mercado imobiliário chinês tem a possibilidade de pressionar o balanço de governos locais, que recebem cerca 30% das receitas de vendas de terrenos.
A previsão é de que países vendam menos produtos, experimentem uma desaceleração da economia e tenham possivelmente um aumento dos juros — devido ao maior risco. Japão e Singapura, onde bancos têm parcela relevante em créditos na China, são exemplos.
A Marathon Asset Management, gestora de investimentos especializada em mercado de crédito e renda fixa, afirmou que pretende comprar a dívida emitida pela gigante chinesa Evergrande. A informação foi dada pelo CEO da empresa, Bruce Richards, em entrevista à Bloomberg nesta quarta (29).
O CEO disse que Marathon, dona de ativos no total de US$ 23 bilhões, pode fazer pagamentos a curto prazo, mas a dívida geral da incorporadora chinesa deve ser reestruturada. O empresário adquiriu dívida da Evergrande pela primeira vez nesta semana.
Mas o gestor alerta que, na lista de prioridades, os investidores de fora da China estão na última posição. A empresa dará prioridade para o pagamento dos proprietários de imóveis, fornecedores e credores de títulos da China.
Para Richards, a crise da Evergrande “é problemática para a China, para o seu mercado imobiliário. E um problema para todo segmento que depende dele. Há muitos empregos relacionados e muito comércio envolvido nisto”. Mas ainda existem oportunidades, segundo o CEO: “O default caiu para menos de 2%. Não acho muito preocupante nesta fase.”
Possível falência da Evergrande poderia impactar ainda mais o minério de ferro
Como esse quadro indefinido pode afetar a economia no Brasil? Há chances dessa crise respingar ou abalar a retomada? João Beck, economista sócio da BRA, explica que uma possível falência da Evergrande pode impactar ainda mais o cenário brasileiro de exportação, já que a China é compradora de sete dos dez maiores produtos de exportação do Brasil. O analista destaca que esse impacto já está sendo sentido: o minério de ferro — que tem relação muito grande com a construção — caiu mais de 30%.
Porém, para ele, esse impacto não aconteceria somente se a incorporadora quebrasse. Uma desalavancagem do setor imobiliário chinês — que está acontecendo– já causaria um crescimento menor por parte da China, e isso influenciaria o restante do mundo também.
No cenário atual, Beck explica que o que temos agora não é um problema de insolvência por parte da incorporadora, mas sim de liquidez: a companhia ainda tem mais ativos do que dívida.
O analista lembra que o partido chinês quer desestimular o setor imobiliário no país como um todo, para evitar especulações no ramo. Assim, Beck destaca que mesmo que uma empresa ou outra do ramo estoure, “teremos um período de desalavancagem no país asiático e isso também pressiona o minério de ferro.”
Essa situação poderia até ser vantajosa para o Brasil no curto prazo levando-se em consideração que, se o preço do minério de ferro continuar caindo muito, a inflação na construção aqui também acaba diminuindo.
De qualquer forma, a balança comercial seria impactada e, com uma desaceleração chinesa, o crescimento do resto do mundo também seria menor.
O economista acredita que, caso surja uma crise desse cenário, não será parecida com a de 2008 — a da bolha imobiliária. Naquele ano o mundo ainda não sabia como resolver nessa situação, mas agora os governos estão preparados para agir rápido. A China tem uma moeda forte e por isso conseguiria fazer um movimento de alavancagem se tiver outros problemas de solventes além da Evergrande.
China injeta US$ 15,5 bilhões no sistema financeiro
O Banco do Povo da China (PBoC) injetou 100 bilhões de yuans (cerca de US$ 15,5 bilhões no câmbio atual) no sistema financeiro chinês através de operações de recompra reversa de 14 dias na última segunda (27) na tentativa de manter a liquidez do sistema bancário em meio a preocupações com as dificuldades financeiras da Evergrande.
Neste mês, o PBoC intensificou as injeções de capital diante de crescentes sinais de insolvência da Evergrande.
Na quinta-feira (23), uma subsidiária da empresa falhou em honrar o pagamento de juros sobre bônus externos. Desde a semana passada, circulam relatos de que o governo chinês irá reestruturar a Evergrande e estatizá-la.
As preocupações de que a Evergrande não pague seus bônus geraram vendas de papéis de outras companhias no setor imobiliário, pesando sobre fundos gerenciados por Ashmore Group, BlackRock e Pacific Investment Management, entre outros.
Enquanto os bônus da Evergrande eram negociados a cerca de US$ 0,25 em boa parte de setembro, se disseminaram as vendas de bônus de outras grandes incorporadoras da China.
Ações e mercado imobiliário brasileiros podem ser afetados pela crise da incorporadora?
O economista Leonardo Burlamaqui, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e pesquisador do Instituto Levy de Economia, da Faculdade Bard, nos EUA, diz que a crise da companhia chinesa parece uma “implosão controlada” pelos reguladores chineses.
Segundo o estudioso do desenvolvimento econômico da Ásia, os problemas da Evergrande ocorrem num momento em que a China conduz mudanças estruturais na economia. “O foco é o aumento relativo do peso do consumo, em detrimento dos investimentos, e a redução das desigualdades. Isso resultará em desaceleração do crescimento econômico, deixando para trás os avanços em torno de 10%, e exige uma “arrumação no meio de campo”, diz Burlamaqui.
O setor de construção civil movimenta de 25% a 30% do PIB da China — gigante, portanto. Ele se caracteriza por endividamento, tanto do ponto de vista das empresas, porque as obras são pesadas, quanto das famílias que estão comprando imóveis. Há endividamento, mas existe crescimento, realização de lucros. Dívidas estão sendo pagas porque existem fluxo de caixa positivo, lucro, empregos e salário aumentando.
Beck explica que caso a Evergrande não consiga honrar suas dívidas, o mercado observaria uma queda do minério de ferro e uma queda um pouco mais generalizada de commodities e de demanda global. Nesse cenário as ações ligadas ao mercado imobiliário, setor de construção e commodities refletiriam os impactos.
Segundo ele, o principal afetado seria o setor de mineração e siderurgia, mas também haveria um efeito mais generalizado devido a um desaquecimento chinês. “Uma eventual desaceleração chinesa diminui também o crescimento local que vinha numa crescente depois da recuperação da segunda onda da Covid”, diz.
Como a China é uma das principais importadoras de matéria-prima local, um calote da Evegrande reduziria a demanda pelos insumos brasileiros, além de derrubar o preço das commodities, segundo o economista João Beck.
O sócio da Monte Bravo, Rodrigo Franchini, também destaca o efeito Evergrande sobre o mercado de commodities metálicas. “A China como grande compradora do mundo vai ser menos adepta a comprar materiais básicos, minério de ferro e qualquer outros produtos em relação à infraestrutura.”
Mais: o país asiático é comprador de 7 dos 10 maiores produtos de exportação brasileiros, como a soja, petróleo, carne de frango e bovina, e em especial o minério de ferro, que tem relação muito grande com a construção e obras de estrutura.
Além disso, Franchini destaca que os setores que dependem das mineradoras e das siderúrgicas também seriam fortemente impactadas pela Evergrande. Este é o caso das incorporadoras e construtoras, segundo ele. “Toda essa roda que gira em torno de infraestrutura vai ter um ritmo menor, mais lento de crescimento”, afirma.
Isso poderia, assim, afetar o mercado imobiliário — mas é difícil prever o desfecho dessa trama nos próximos meses. Analistas apontam que, por ora, não há motivos para pânico no curto e médio prazos.
Em setembro, antes de estourar a crise da Evergrande, quando perguntado se a escalada da Selic poderia abalar o mercado de FIIs, Gabriel Pereira, head de fundos imobiliários da Acqua-Vero, disse que o valor dos fundos imobiliários caiu tanto que o momento de entrada é muito atrativo para o novo investidor.
“São muitos os dados favoráveis sobre os FIIs que mostram que esse investimento está fazendo sentido”, afirmou Pereira à época, em relação ao número de investidores em fundos imobiliários. Essa afirmação continua valendo já que não se vislumbra ainda um abalo nos preços dos imóveis tão forte que faça o mercado sofrer impacto tão grande.
Os FIIs têm outras vantagens, como a isenção de imposto de renda sobre os rendimentos. Investimentos como os de renda fixa incluem a cobrança de 15% de IR a partir de 2 anos, lembra Pereira.
Em entrevista exclusiva ao SUNO Notícias — transmitida pelos canais no YouTube e Instagram do portal –, a diretora executiva do conselho empresarial Brasil-China, a jornalista e escritora Cláudia Trevisan disse que o governo chinês deve intervir em “um processo administrado de queda da empresa”, um misto de estatização, liquidação de ativos, desmembramento da empresa e reestruturação da dívida.”
“O governo do país asiático está caminhando numa linha muito tênue: não pode flexibilizar demais, mas também não pode endurecer a ponto de aumentar uma crise no setor. Muito importante ter em mente que a prioridade número um do partido que governa a China é a estabilidade social, e neste momento a estabilidade é ainda mais importante, pois ainda estamos em plena fase eleitoral no país”, lembra Trevisan, sobre o caso Evergrande. Assim, com a expectativa de que a China resolva a crise, estima-se que o mercado imobiliário no Brasil não sinta por enquanto um tremor tão forte quanto o percebido pelas bolsas. A tendência ainda é de estabilidade
Com informações do Estadão Conteúdo