Embora invisíveis para muitos, semicondutores são hoje a força motriz do universo digital. Os chips construídos a partir desses minúsculos produtos são encontrados em quase todos os equipamentos eletrônicos que movem o mundo, desde smartphones, automóveis e até eletrodomésticos. Mas semicondutores não crescem em árvores e o mercado está sofrendo os reveses desse fato, em uma crise de escassez sem precedentes.
Mesmo relativamente nova, a indústria cresceu para se tornar uma das mais ricas e importantes do planeta. Os semicondutores constituem chips utilizados em quase todos os setores da economia, com vendas globais de mais de US$ 440,4 bilhões (cerca de R$ 2,34 trilhões) no ano passado, segundo dados da Semiconductor Industry Association (SIA), um incremento de 6,8% em relação aos dados de 2019 de US$ 412,3 bilhões.
Tais produtos são particularmente difíceis aperfeiçoar e, talvez por isso, altamente demandados. Ainda assim, fabricantes reportaram problemas para garantir o fornecimento, com um impacto direto sobre a cadeia de suprimentos global. Com desenvolvimento nas mãos de um punhado de companhias, é esperado que a escassez se arraste por meses.
Semicondutores são disputados por diversos setores. Tornou-se, pois, uma questão de oferta e demanda. Porque o mercado de tecnologia é visto como cliente rico, o setor automotivo sofreu o primeiro golpe. A Ford (FDMO34), por exemplo, disse esperar uma perda de cerca de 50% da produção planejada para o segundo trimestre, contra 17% no primeiro trimestre. Já a GM (GMCO34) espera um impacto de até US$ 2 bilhões sobre o Ebit (lucro antes de juros e impostos).
O gargalo vai levar as montadoras a uma perda de produção de 3,8 milhões de unidades, ou 5% das vendas anuais estimadas para 2021, de acordo com informações da AutoForecast Solutions, citadas em relatório da Fitch Ratings. “A escassez de chips provavelmente durará mais e seu impacto será maior do que o previsto pelo mercado”, avaliou a agência de classificação de risco.
Mas, eventualmente, o impacto chegou para as techs. O CEO da Apple (AAPL34), Tim Cook, disse à Reuters que as vendas de Macs, iPads e do iPhone 12 Pro também enfrentaram “restrições de oferta” na cadeia de suprimentos.
As empresas de semicondutores estão produzindo mais do que nunca, um reflexo do crescimento exponencial do mercado de chips. E essa tendência não dá nenhum sinal de desaceleração. A chegada de tecnologias como 5G e Internet of Things prometem exigir uma capacidade ainda superior processamento e, concomitantemente, mais chips.
O mercado de semicondutores
No anos de 1970, Gordon Moore, cofundador da Intel (ITLC34), professou uma tendência de que, a cada dois anos, o número de transistores dos chips teria um aumento de 100%, pelo mesmo custo. A previsão ficou conhecida como Lei de Moore. Ela não é, de fato, uma lei, mas se provou real e se tornou parâmetro para o mercado.
Embora a complexidade dos chips tenha aumentado, as estruturas diminuíram (e muito) de tamanho. De acordo com relatório de 2020 da McKinsey & Company, são poucas as empresas capazes de projetar e fabricar os produtos mais avançados. Quando falamos de semicondutores, três companhias dominam a indústria:
- Intel;
- Samsung;
- TSMC (Taiwan Semiconductor Manufacturing Company).
Porém elas não seguem o mesmo modelo de negócio. As duas primeiras, bem conhecidas do grande público, são Fabricantes Integradas de Dispositivos (IDMs, na sigla em inglês), ou seja, podem criar o design, produzir o chip e vendê-lo, com uma operação verticalizada. Já a TSMC (TSMC34) é uma foundry, uma empresa que apenas faz os chips para terceiros.
Esta última é a primeira do tipo a ser capaz de produzir um chip de 5 nanômetros, a mais avançada tecnologia de processo de semicondutor disponível no mundo. E “se o produto ou serviço de uma empresa é ainda um pouco melhor do que o de um concorrente, normalmente captura uma porção descomunal da receita do setor”, destacou a McKinsey.
A TSMC possui uma market share total do mercado de foundry de 57%. Entre seus principais clientes estão a Apple, a Nvidia (NVDC34) e a Qualcomm (QCOM34).
Mas há outro fator que coloca a TSMC no centro dos holofotes: a localização. Sediada em Hsinchu, Taiwan, a gigante está no meio de uma crise geopolítica, mais um capítulo da nova Guerra Fria.
O desaguar na crise de faltas de chips
É seguro pontuar: tão importante que se tornou a produção de chips, a indústria virou alvo da disputa pela liderança econômica entre Estados Unidos e China.
No ano passado, além da Huawei, a Casa Branca adicionou um outro nome à lista proibida: o da SMIC (Semiconductor Manufacturing International Corporation). Com a restrição de negócios junto à fabricante chinesa, empresas americanas se voltaram para a TSMC, criando um gargalo.
A demanda por produtos de Taiwan levou a administração de Joe Biden a retomar o fornecimento de armas para a ilha rebelde de Pequim. O democrata ainda anunciou um investimentos de US$ 50 bilhões no país e convidou o CEO da TSMC para jantar.
O problema é: Taiwan passou por um período de estiagem, com semanas sem ver uma gota de água do céu, commodity necessária em abundância para limpar a base dos chips.
Mas o Partido Comunista Chinês não ficou parado. Ciente das limitações, Pequim está financiando e apoiando a autossuficiência de empresas mais avançadas tecnologicamente.
Douglas de Castro, diretor do Núcleo de Estudos Avançados em Direito e Política Internacional na Ambra University e advogado no Cerqueira Leite, chamou atenção para a mudança de foco da China nos últimos anos, “de infraestrutura e moradia, para tecnologia.”
Na análise do especialista, por um lado, há a gigantesca economia chinesa, que continua a crescer e a exigir cada vez mais semicondutores. Por outro, a pandemia mudou os hábitos de consumo e, por isso, “elevou a demanda por esse tipo de produto.”
De acordo com dados globais da KPMG, 81% dos entrevistados atualmente estão comprando mais online, enquanto 58% estão usando tecnologias diferentes daquelas com as quais estavam acostumados. No mais, para tornar a situação de ficar enfurnado em casa mais tolerável, indivíduos apelaram para mais tempo em serviços de streaming e games.
Soma-se a isso, um setor automotivo mais tech. Se hoje é possível atender chamadas pelo sistema do carro, ou mesmo deixá-lo estacionar sozinho, é por causa de semicondutores, usados para construir os chips que tornam possíveis tais tecnologias.
Os veículos leves utilizam até 600 chips por unidade, e os pesados até 280, segundo informações da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea).
“O fornecimento de semicondutores tem prejudicado o ritmo de produção de nossas fábricas desde o início deste ano. A grau de prejuízo depende de cada associado, mas temos caso de fábrica parada por conta desse problema, outras reduzindo turno de produção, outras simplesmente com microparadas, e algumas menos afetadas”, disse a organização em nota enviada por email.
As perspectivas para os próximos meses
Na última coletiva de imprensa, o presidente da Anfavea, Luiz Carlos Moraes, declarou que o problema de fornecimento em nível global deve continuar pelo menos até o fim deste ano.
O CFO da Ford, John Lawler, foi mais otimista. Nas palavras do executivo, a escassez, agravada por um incêndio em uma fábrica de um fornecedor no Japão, “vai piorar antes de melhorar”. Mesmo assim, a empresa disse acreditar que a crise chegará ao fundo do poço no segundo trimestre, com melhora no restante do ano.
Quanto à corrida pela autossuficiência, Douglas de Castro, especialista em Direito e Política Internacional, não vê um fim tão próximo. “Por mais que a China seja uma grande demandante de semicondutores, ela ainda é muito dependente de Estados Unidos e Japão”.
“Com os investimentos que os países fazem nesse tipo de tecnologia, (…) a competição [pela fabricação de chips] vai continuar”, pontuou.