Entenda a diferença da crise de 2002 para 2019 da Argentina
No dia 28 de agosto a Argentina decretou moratória sobre sua dívida junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Em menos de vinte anos o país vizinho declarou calote duas vezes sobre sua dívida externa.
Imediatamente após essa decisão do governo do presidente Maurício Macri, o risco-país da Argentina voltou a subir rapidamente, alcançando o patamar mais alto em 14 anos. O Banco Central foi obrigado a intervir para conter a alta do dólar frente ao peso.
As praças das principais cidades argentinas voltaram a se encher de manifestantes. E o governo registrou uma queda da já baixa popularidade.
Em meio a essas convulsões economias e políticas, estaria a Argentina enfrentando uma crise tão grave como a de 2002?
Para responder essa pergunta o SUNO Notícias conversou com economistas brasileiros e argentinos que apontaram as semelhanças e diferenças entre os dois momentos da história recente argentina. Os especialistas avaliaram os efeitos da crise do país vizinho no Brasil e sobre o acordo de livre-comércio do Mercosul com a União Europeia.
Semelhanças e diferenças
O professor de macroeconomia, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), João Ricardo Costa Filho, explicou que as origens das crises são diferentes, mas que o desfecho é o mesmo.
De acordo com o professor, “a principal diferença é o papel do câmbio, que estava muito desalinhado na crise anterior, e o colapso do regime combinado com a parada abrupta no fluxo de capitais e o aumento dos prêmios de risco” que trouxeram dificuldade à economia da Argentina.
Por sua vez, o economista argentino, Luis Secco, ressaltou que “a principal diferença está na liquidez e solvência do sistema financeiro. A crise de 2002 foi uma crise que teve seu epicentro no sistema financeiro. Não teve início contra as reservas do Banco Central, mas contra os depósitos do sistema financeiro”.
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Um dos efeitos mais evidentes da crise do começo do século foi quando Argentina perdeu aproximadamente US$ 4 bilhões em reservas internacionais em 2002, em comparação com 2001. Dessa forma, após a renúncia do ex-presidente Fernando De lá Rua, o novo governo decretou o fim da conversibilidade da divisa argentina com o dólar.
O governo tinha estabelecido a paridade um a um entre o dólar e o peso por mais de uma década. Mas com a redução das reservas cambiais, se tornou impossível manter esse respaldo à moeda argentina.
Desse modo, o economista argentino José Siaba Serrate, ressaltou que a principal diferença foi o “descompasso nas operações de dólares”.
“A principal diferença entre a crise de hoje e de 2002, é que [na época da recessão] os contratos foram dolarizados e o sistema financeiro teve um descompasso nas operações de dólares. Isso foi tremendamente traumático”, explicou o economista argentino.
A manchete do jornal “Folha de S.Paulo”, do dia 24 de novembro de 2002, dizia: “fome mata 3 crianças por dia na Argentina”. O veículo ressaltava que a crise econômica tinha elevado de 35% para 53% a parcela da população urbana que estava abaixo do nível de pobreza.
Por isso, o Ministério de Justiça e Direitos Humanos decidiu naquele momento instituir a “Lei de emergência econômica e social” com o objetivo de combater a fome e a desnutrição do país.
Semelhante a crise de 2002, a Câmara dos Deputados da Argentina aprovou, na última quarta-feira (12), o projeto de “Lei alimentar de emergência”. A proposta prevê aumento de 50% nos recursos utilizados para o financiamento de programas sociais de assistência alimentar.
“Estamos enfrentando um problema de fome, desnutrição e uma queda acentuada de renda. Todos nós temos que ajudar em um contexto complicado em que muitas pessoas têm dificuldade”, disse o deputado argentino e relator do projeto, Daniel Arroyo, do Partido Justicialista, de oposição ao governo Macri.
Entretanto, para que a medida entre em vigor, é necessário ainda que passe pelo Senado Federal do país para que seja aprovado.
Crise do financiamento do setor público
Segundo todos os especialistas entrevistados, a principal semelhança entre as crises é a restrição do financiamento do setor público. O governo argentino gastou sistematicamente mais do que arrecadou ao longo de todos esses anos.
Além disso, o professor Costa Filho acentuou que “como a Argentina tem outro regime de câmbio, a dificuldade para fechar as contas públicas (e o compromisso com o FMI de não emitir moeda para financiar o déficit) fez com que o endividamento aumentasse rapidamente”.
“São origens diferentes, mas um mesmo desfecho: recessão”, completou Costa Filho.
Segundo Serrate, a recessão atual também foi gerada por problemas do sistema financeiro argentino. No entanto, diferentemente do que ocorreu em 2001/2002, dessa vez o processo de reestruturação da dívida “será tratado” de forma diferente.
“Hoje, de fato, o sistema financeiro está enfrentando grandes problemas de liquidez, mas sem qualquer contratempo em sua operação, e até certo ponto algo foi aprendido em 2001. Agora acho que a dívida será tratada de uma forma mais reestruturada e profissional”, disse Serrate.
Como as recessões da Argentina afetam a economia do Brasil
A recessão do país vizinho em 2002 afetou diretamente a economia do Brasil. Na época a Argentina era um dos principais destino de exportações brasileiras, sendo os dois membros do Mercosul, e entre os principais parceiros comercial do País.
Um dos relatórios divulgados naquele ano pelo Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec), o equivalente argentino do IBGE, demonstrou que as vendas brasileiras para a Argentina haviam caído 71,5%.
A economista da Coface, Patricia Krause, salientou dados comparativos sobre a diferença econômica em que o Brasil se encontrava durante a crise, e em como se encontra atualmente.
“No final de 2001 o Brasil tinha reservas internacionais de apenas US$ 37 bilhões, o que dava algo em torno de 7% do PIB naquele ano e equivalia a 7.8 meses de importação. O Brasil ainda era devedor líquido em moeda externa. Em 2002 foi também a última vez que recorremos ao FMI. Já atualmente somos credores líquidos em moeda externa e contamos com reservas internacionais de mais de US$ 380 bilhões, o que significa cerca de 21% do PIB estimado para 2019, é o suficiente para cobrir 26 meses de importação”, salientou Krause.
A economista ressaltou dois pontos principais do por que a crise atual da Argentina não tem surtido efeitos significativos no Brasil. De acordo com Kause:
- A economia brasileira é “ainda muito fechada”
- A participação da Argentina na pauta exportadora do Brasil tem sido cada vez menor
“A crise atual tem pouco efeito porque a ligação entre a economia brasileira e a argentina se tornou menor ao longo dos anos”, informou Serrate.
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Além disso, Secco salientou que as questões de política interna no passado geravam “consequências econômicas e financeiras bastante grave”. Porém, durante os últimos anos a economia brasileira demonstrou grande resiliência.
Por sua vez, o professor Costa Filho ressaltou que o desdobramento das reformas no Brasil, principalmente a da Previdência, têm feito com que o País não seja muito afetado com a recessão de seu vizinho. Entretanto, isso não o isenta de dificuldades extra “no caminho do crescimento econômico brasileiro”.
“A crise anterior atingiu a nossa economia em um período delicado. Estávamos fragilizados após o apagão e num período conturbado de transição política, com muitas dúvidas sobre a continuidade da política econômica. Desta vez, em que pese a dificuldade que a nossa economia tem se recuperar, o voto de confiança por parte do capital financeiro, especialmente após o andamento da reforma da previdência, diminuiu o efeito de ‘portfólio’ do impacto. Mas nós temos sentido do ponto de vista comercial que a recessão na Argentina traz dificuldade extra ao nosso crescimento”, explicou Costa Filho.
Crise política afeta acordo livre entre Mercosul e UE
Além do Brasil, a recessão argentina de 2002 afetou diretamente a economia de outros membros do Mercosul. “Graça à crise argentina, o Uruguai também perdeu seu título de Investment Grade – ou seja, de país seguro para investidores”, dizia a manchete do jornal “BBC” do dia 14 de agosto de 2002.
Da mesma forma, atual recessão econômica e crise política da Argentina tem gerado temor no bloco do mercado comum da América do Sul. Principalmente em relação ao acordo de livre-comércio recém alcançado com a União Europeia (UE).
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Segundo Secco, em momentos de crises é normal a volta de políticas protecionistas que acabam dificultado acordos de livre-comércio.
“Lamentavelmente, as tendências protecionistas não ajudam a favorecer políticas que visem o livre-comércio e a expansão do comércio nos níveis regional e global. Era de se esperar que surgissem posturas opostas ao acordo entre o Mercosul e a UE pelo lado da oposição peronista e de alguns setores que se beneficiarão com a política protecionista”, disse o economista argentino.
“O provável novo governo de Alberto Fernandez deve ser menos favorável ao livre comércio. Desta forma, diante do atual cenário de fraqueza da indústria Argentina, parece pouco provável que o novo governo tenha o acordo como uma prioridade”, salientou Kause.