O economista ultraliberal Javier Milei, do partido Liberdade Avança, venceu neste domingo (19) a eleição para presidência na Argentina, em disputa contra o peronista Sergio Massa. No Brasil, Milei repercutiu ao defender pautas liberais e chamar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva de corrupto, além de tecer críticas ao Mercosul e China. Isso tudo levou ao questionamento de como será a relação entre Brasil e Argentina nos próximos anos.
Alçado à fama como comentarista econômico em programas de televisão, Javier Milei ganhou apoio de políticos da direita tradicional no segundo turno, como o ex-presidente Mauricio Macri e a candidata derrotada Patricia Bullrich.
O futuro presidente argentino define-se como libertário e anarcocapitalista e declarou-se defensor de ideias como a livre venda de armas. Ele promete dolarizar a economia argentina e extinguir o Banco Central argentino para acabar com a inflação. Porém, no segundo turno, ele amenizou promessas anteriores, prometendo não mais privatizar a saúde e as escolas públicas.
Para alguns analistas, no curto prazo, a relação entre os dois países comercialmente não deverá mudar, pesando o pragmatismo. Rafael Pacheco, economista da Guide Investimentos, destaca que Milei, nos últimos atos de campanha para presidente da Argentina, atenuou o discurso, afirmando que as empresas privadas eram livres para realizar comércio com quem preferissem.
“O comércio com o Brasil é extremamente favorável para a Argentina. Somos um dos países para o qual os vizinhos mais exportam bens de alto valor agregado. Então, vale a pena para as empresas na Argentina exportarem para o Brasil e manterem essa relação comercial positiva”, afirma Pacheco.
No mercado financeiro, a principal preocupação é sobre a existência de um desalinhamento ideológico que possa prejudicar o relacionamento comercial entre os dois países. Porém, Marcelo Boragini, sócio e especialista da Davos Investimentos, diz que a maior parte das empresas brasileiras que têm a Argentina como cliente não são listadas na Bolsa de Valores.
Nos últimos anos, várias multinacionais abandonaram a Argentina, em crise econômica com inflação anual de mais de 140% e juros básicos na casa de 133% ao ano, para mitigar os riscos em suas operações. Recentemente, o Itaú (ITUB4) encerrou após 40 anos sua operação na Argentina, vendendo-as para o Banco Macro, por cerca de R$ 250 milhões.
Em relação às empresas listadas na Bolsa, Boragini analisa que a economia argentina não demonstrou impactos relevantes nos resultados. “A crise na Argentina afeta as empresas brasileiras, mas a exposição é pequena. A Ambev (ABEV3), em doze meses, teve uma queda de 9% nessa exposição, mas no resultado do terceiro trimestre surpreendeu positivamente. A Argentina não impactou no resultado da Ambev.”
O lucro líquido da Ambev disparou 24,9% no 3T23 na base anual, atingindo R$ 4,015 bilhões. As operações internacionais da cervejaria na América Central e Caribe compensaram as quedas da venda na América Latina e Canadá.
Sobre as empresas que têm uma mais exposição à Argentina, a Ambev tem hoje de 7% a 8% de sua receita ligada a operações no país que será governado por Javier Milei. A CVC (CVCB3) tem um percentual maior, de 12% a 15%. Logo em seguida, vem a Minerva (BEFF3) em torno de 10% na receita, Marcopolo (POMO4) com 8% e Usiminas (USIM5) com 5%.
“Dessas empresas citadas, a Minerva, por ter uma grande exposição [na Argentina], vem sofrendo mais, com uma queda de 50% no ano. Porém, a Marcopolo cresceu absurdamente neste ano”, explica Boragini.
Milei terá dificuldade de emplacar sua agenda de reformas
As privatizações são o eixo central das propostas de governo de Milei. O objetivo do novo presidente Argentino é privatizar meios de comunicação públicos, dolarizar a economia e até acabar com o Banco Central Argentino.
Além disso, tratados internacionais como o Mercosul são alvos do novo presidente eleito da Argentina, que já chamou o acordo de um “estorvo”.
Mesmo diante desta retórica política inflamada, o economista Paulo Feldmann, professor de graduação da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e pesquisador da Universidade Fudan, na China, pontua que Milei dificilmente conseguirá levar maior parte das ideias, inclusive as que dizem respeito ao Mercosul para frente. “Na Argentina, o Congresso é muito poderoso. É um parlamento que pensa de uma forma diferente do Milei. O peronismo tem mais de 40% de representatividade entre os parlamentares.”
Em relação ao Mercosul, Feldmann diz que um possível enfraquecimento do bloco seria ruim para América do Sul e Argentina. “O grande problema dos países da América do Sul é que o Mercosul é muito pequeno diante do potencial que ele tem, comparado a outros blocos econômicos e outras regiões do mundo. Particularmente, acho que essa história do Milei de cogitar sair do Mercosul é mais uma questão para ganhar a eleição, uma bravata”, pondera Feldmann.
Para Alvaro Bandeira, coordenador da Comissão de Economia da APIMEC Brasil, algumas empresas podem ser afetadas caso aconteçam mudanças aquelas ligadas aos processos do Mercosul. “São especialmente as empresas de bens-duráveis como eletrodomésticos e automóveis. A Argentina é importante dentro do grupo.”
Milei precisará ampliar apoio político
O bloco peronista Unión Por La Patria terá 108 representantes no Congresso, de um total de 257. O Juntos Por El Cambio, partido do ex-presidente argentino Mauricio Macri, terá cerca de 93 representantes. Por fim, o La Libertad, de Milei, vai ter aproximadamente 38.
Com uma janela de transição pequena, o novo presidente argentino deverá ser diplomado em dez de dezembro, Milei por ser uma figura nova na política terá que compor acordos com políticos mais ao centro para governar.
“Será muito importante acompanhar as alianças que o novo presidente fará, desde o início do segundo turno, Milei já vem se aliando com centristas como “Juntos por El Cambio”, partido de Macri. O mercado acompanhará de perto alguns nomes desse novo governo e quem assumirá de fato o ministério da Economia“, explica Boragini.
E como fica o Mercosul?
O professor de Relações Internacionais e Economia da Universidade Federal do ABC (UFABC) Giorgio Romano Schutte ressaltou que ainda é cedo para avaliar como ficarão as relações entre os dois países, mas acredita que o comércio não deve ser alterado.
“As relações comerciais são feitas por atores econômicos. Isso não deve sofrer tanto. O comércio vinha sofrendo por causa da situação econômica na Argentina. Agora, há um fato de incerteza, que é de como os investidores vão avaliar a eleição. Mas a tendência é de que as relações comerciais existentes não devem sofrer tanto assim”, ponderou.
Sobre o Mercosul, Schutte avaliou que Milei pode tentar mudar as regras, mas que caberá ao Brasil resistir. Além disso, destacou que as propostas do atual governo do Brasil de revitalizar a integração latino-americana devem ser prejudicadas, devido à postura do futuro presidente argentino. “Essa ideia de fortalecer a inserção brasileira no mundo por meio de uma integração latino-americana vai ficar muito difícil”, acrescentou.
O cientista político argentino Leandro Gabiati destacou que aliados e assessores do futuro presidente da Argentina, apesar de afirmarem que ele não terá relação pessoal com o presidente Lula, afirmam que haverá contatos institucionais via Itamaraty ou ministérios.
“Ainda que os dois presidentes não conversem diretamente, há interesses em comum que farão com que as relações entre os dois países continuem relativamente normais. Enxergo como algo parecido com o que aconteceu entre o ex-presidente Bolsonaro e o presidente argentino Alberto Fernández. Os dois não dialogaram durante suas gestões, mas muita coisa continuou avançando”, ponderou.
Gabiati acredita, porém, que medidas de teor liberal, ainda que não tire a Argentina do Mercosul, pode enfraquecer o bloco. “Não será uma relação fácil entre Argentina e Brasil, mas não se chegará ao radicalismo de tirar a Argentina do Mercosul porque isso traria sérios impactos para economia e indústria argentina”, afirmou.
Como fica o Brics?
A pesquisadora do Observatório de Política Externa e da Isenção Internacional do Brasil (Opeb) Audrey Andrade Gomes destacou que a vitória de Milei deve reduzir a coesão do Mercosul e interferir no Brics, bloco econômico que o Brasil participa e reúne potências emergentes, como China, Rússia, África do Sul e Índia e que, recentemente, incluiu a Argentina no bloco.
“Talvez ele não consiga cumprir suas promessas de campanha, como a distância que ele quer manter com a China e o Brasil. Ele não tem como se desvencilhar dos principais parceiros da Argentina. Mas, ainda assim, ele pode criar problemas de integração que dificultem a coesão e solidez do Mercosul. Mas o problema maior é o Brics, porque esse bloco tem proposta de usar outra moeda para transações comerciais que fujam ao dólar e essa não é a proposta do Milei“, afirmou a Agência Brasil.
Quais ativos na Argentina podem se valorizar após eleição?
Segundo Bandeira, os ativos na Argentina, em princípio, que podem ter valorização são as empresas que podem ser privatizadas, como a petroleira YPF e outras companhias ligadas a criptoativos.
Na tarde desta segunda-feira (20), a YPF registrou alta de 41% em seus papéis negociados em Nova York, com preço de US$ 15,18.
Além da YPF, após a vitória de Milei, hoje as ADRs do banco BBVA e a Telecom Argentina também sobem, com alta de 19% e 18%, respectivamente.
Com Agência Brasil