O ambiente de crise econômica no Brasil – com inflação e juros altos – está começando a esgarçar a lei dos distratos, criada há três anos e meio para definir regras claras para o cancelamento dos contratos de compra e venda de imóveis na planta.
Advogados do ramo relatam que há decisões judiciais reduzindo as multas firmadas nos contratos de imóveis dentro dos parâmetros legais no intuito de dar uma forcinha a consumidores em dificuldades financeiras. A situação preocupa incorporadoras, que veem o risco de se estimular as rescisões, gerar prejuízos e criar um clima de insegurança para investimentos em novos projetos.
A lei dos distratos surgiu depois que os cancelamentos de vendas explodiram a partir de 2014, quando o País entrou em recessão. Na época, não havia regras para essa situação, e as decisões judiciais obrigavam as empresas a devolverem 75% do valor pago pelos consumidores. As incorporadoras perderam dinheiro, deixaram prédios inacabados e amargaram anos com resultados negativos.
Com a lei, ficou estabelecida a retenção de 50% do valor pago pelo consumidor até o momento da rescisão. Também foi definido que não haverá devolução da taxa de corretagem, de cerca de 5% do valor do imóvel. Outro ponto importante: as incorporadoras ficaram autorizadas a devolver o dinheiro só depois de entregarem o imóvel e receberem o habite-se, de modo a evitar que ficassem sem dinheiro para terminar a obra.
Imóveis: intensificação do término de obras
Agora, o cenário é diferente. O mercado imobiliário está entrando numa fase de intensificação do término de obras após dois anos de recordes de vendas. E quem fechou a compra de um apartamento na planta tempos atrás está com mais dificuldades para obter o crédito imobiliário porque os juros dos financiamentos subiram. Ou seja, o caldeirão reuniu os ingredientes para os distratos voltarem a subir. “Acho que vai ter mais pedidos de distrato nos próximos meses”, alerta o sócio do escritório VBD Advogados e consultor jurídico de Secovi e Sinduscon, Olivar Vitale.
Os sócios Pedro Serpa e Daniel Gomes, do escritório SIDC Advogados, especializado em direito imobiliário, relatam que estão notando um aumento nas demandas por processos relacionados a distratos e que já esbarraram com decisões judiciais baixando as multas previstas em contrato. Segundo eles, a Lei 13.786 deixou brecha para que os valores sejam alvos de contestação nos tribunais. “O juiz tem a discricionalidade para reduzir a multa. Isso tira o caráter de segurança e previsibilidade que era esperado na construção da lei”, diz Gomes.
Os sócios acrescentam que esse tipo de brecha pode até criar situações em que o consumidor que esteja em dificuldades financeiras veja o distrato como uma boa solução, já que oferece a chance de recuperar mais de 50% do valor pago acrescido da correção monetária por INCC ou IGP-M. “Com a inflação e os juros em alta, optar pelo distrato pode ser até um negócio atrativo”, observa Serpa.
Na visão do advogado Marcelo Tapai, sócio do escritório Tapai Advogados, voltado a consumidores, é natural que haja flexibilização dos termos contratuais, pois é sabido que o juiz pode interferir quando vê desequilíbrio em alguma das partes.
O volume de distratos teve aumento considerável em termos nominais, mas segue estável como porcentual do total de unidades comercializadas. É preciso lembrar que o mercado teve recorde de vendas nos últimos dois anos.
Foram registrados 9.701 casos de distratos em 2019, 12.556 em 2020 (alta de 29,5%) e 13.104 em 2021 (alta de 4,5%). Os dados são de pesquisa realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) em parceria com a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc).
Os distratos responderam por 11,8% das vendas de imóveis em 2019, 11,1% em 2020 e 11,6% em 2021. Ou seja, apesar do aumento nominal, não se trata de uma crise. Os números ainda estão longe do pico de 2015, quando foram distratadas 19.050 unidades, ou 35,1% das vendas. A Abrainc foi procurada, mas não concedeu entrevista.
Com Estadão Conteúdo