Ucrânia: como a crise impacta seu bolso no Brasil, da gasolina aos preços dos alimentos
Na última segunda-feira (31), o mundo viu novos contornos da crise diplomática entre o Ocidente e o Oriente – em discussões do Conselho de Segurança da ONU -, e durante a semana cresceram as preocupações sobre a escalada das tensões no leste europeu e a perspectiva de uma incursão militar da Rússia em terras da Ucrânia.
Se por um lado, o presidente americano Joe Biden disse que os Estados Unidos estão comprometidos com uma saída diplomática para o conflito, sem descartar uma resposta forte caso haja uma invasão da Rússia, por outro, o chefe do Kremlin, Vladimir Putin, acusa americanos e ucranianos de desconsiderar os alertas feitos por Moscou.
A grande preocupação da liderança russa é que a Ucrânia seja aceita na aliança militar Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), que reúne países da América e Europa, e com isso os Estados Unidos tenham acesso militar ao vizinho russo. Atualmente, o país da Otan mais ao leste é a Turquia.
Ainda que Kiev fique a 10,5 mil km de Brasília – um quarto de circunferência da Terra e pelo um oceano de distância em qualquer direção que se vá -, os impactos de uma crise lá não demorariam muito a serem sentidos no Brasil.
Especialistas ouvidos pelo Suno Notícias alertam principalmente para intermitências na produção e fluxo de commodities, entre elas grãos, fertilizantes, gás e petróleo, o que têm influência direta nos preços praticados por aqui.
Possibilidade de conflito aberto na Ucrânia existe, mas não é cenário-base
Mario Braga, analista sênior da Control Risks, avalia que o cenário mais provável é que as negociações diplomáticas não avancem, levando à escalada das tensões, sem que isso atinja o ponto de um conflito militar direto.
Entre os fatores que contribuem para este ser o cenário mais provável da crise, Braga destaca que o resultado seria o mais alinhado aos interesses russos – exercer pressão sobre a Ucrânia até o ponto em que fazer parte da Otan traria mais riscos que benefícios aos países da aliança militar.
“Isto poderia se concretizar de diversas formas, como ataques cibernéticos, bloqueio de serviços online ou apoio russo aos rebeldes na fronteira leste do país. Não é um apoio direto, mas fomenta a instabilidade”, afirmou Braga ao Suno Notícias.
Em segundo lugar, Braga aponta que uma alternativa factível não seria ainda um conflito, mas uma pressão prolongada, com a manutenção das tropas russas na fronteira (hoje há mais de 100 mil soldados russos ali) e extensão do período de exercícios militares por meses.
Em terceiro, no cenário outlier – que não é impossível, mas improvável – estaria uma invasão militar russa restrita apenas ao leste da Ucrânia. região do país muito ligada à Rússia, com boa parte de habitantes de origem étnica russa. Conforme o analista, uma incursão total ao País até a capital Kiev, mais a oeste, seria muito mais cara e pesada, e resultaria em sanções mais fortes pelos países ocidentais.
Braga ressalta que, apesar de nem Rússia nem Ucrânia serem parceiros comerciais tradicionais do Brasil, a região tem destaque para a produção de grãos, fertilizantes, assim como para o escoamento de óleo e gás para Europa. Por isso, instabilidades que afetem o leste europeu têm impactos diretos para o preço global de commodities.
No caso do trigo, produzido em grande quantidade no leste ucraniano, uma redução da produção e oferta por causa da crise poderia fazer o preço global da commodity subir e exercer pressão altista nas perspectivas inflacionárias.
“A gente está falando de pãozinho e macarrão mais caro. O cenário inflacionário no Brasil não está muito benigno e haveria esse driver inflacionário via escassez de trigo no mercado global”, afirmou o especialista. “O mesmo vale para quando a gente fala de petróleo e gás natural”, completou.
Segundo Braga, uma das sanções avaliadas contra a Rússia seria excluída dos meios de pagamento internacional – o sistema Swift -, o que acarretaria redução da oferta e aumento de preços.
Outra preocupação são danos físicos à infraestrutura, como bombardeios ou atos de sabotagem contra os gasodutos que abastecem a Europa, que aumentaria a demanda por outras fontes de abastecimento e elevaria os preços.
“Nesse cenário, gasolina, diesel e gás natural no Brasil ficariam mais caros, uma vez que a política de preços da Petrobrás (PETR4) é seguir a cotação internacional. Rapidamente, haveria um efeito cascata chegando ao Brasil”, afirmou o especialista.
Preço do petróleo está descolado dos fundamentos
Ellen Wald, historiadora, presidente da Transversal Consulting e membro-sênior do Atlantic Council’s Global Energy Center, avalia que já há um prêmio de risco para a cotação do barril de petróleo em função do cenário geopolítico, o que faz a commodity ser negociada a preço superior ao que ditam os fundamentos econômicos.
Para a especialista, estas condições fazem o barril ser comercializado US$ 10 a mais do que seria razoável para a situação, na casa dos US$ 80. Conforme cotação nesta sexta (4), o barril do WTI é vendido por US$ 90,28, enquanto o Brent sai por US$ 93,43.
“E muito dessa situação tem relação com a situação entre a Rússia e a Ucrânia no momento. Definitivamente, há uma preocupação de que o que quer que aconteça leve a sanções, não necessariamente contra a produção de petróleo, mas contra o transporte e a comercialização”, disse ao Suno Notícias.
Wald disse ver com ceticismo a possibilidade de que, caso as forças militares russas decidam invadir a Ucrânia, haja uma aumento estrondoso na produção de petróleo e refinados a fim de suportar o esforço de guerra, fator que teria pressão baixista na cotação.
“Não é como na Segunda Guerra Mundial em que quantidades maciças de óleo foram necessárias para lutar a guerra. Sim, a Rússia precisa de combustíveis para abastecer os tanques, mas não é como se isso fosse causar um pico na demanda”, explicou. “O principal problema é a interrupção do fluxo de energia.”
Entre os entraves à comercialização, a especialista destaca a possibilidade, discutida por analistas, de excluir a Rússia do sistema Swift de pagamentos internacionais. Em resposta, Moscou disse que cortaria o fornecimento caso as nações europeias deixassem de pagar pelo fornecimento, o que levanta a discussão de alternativas para as transações, e se esta seria uma medida efetiva.
“Seria difícil, mas não é impossível encontrar uma solução para pagar a Rússia em euros, ou em rublos russos”, destaca. “Seria desafiador por um tempo, mas há países como a Alemanha que estariam dispostos. Acho que a veríamos uma alta temporária [no preço da commodity], mas, se os países continuassem a comprar, apesar da piora no mercado, não acho que haveria uma consequência de longo prazo.”
Em um cenário de interrupção do fornecimento de petróleo e derivados entre Rússia e a Europa, Wald avalia que a nação siberiana poderia escoar a produção para a China, “que ficaria mais do que feliz em comprar os produtos sancionados com descontos”.
Do lado russo, ainda que houvesse uma redução de 50% no valor do petróleo em relação à cotação atual, a comercialização ainda seria vantajosa. Já para a Europa, haveria uma reorganização das cadeias logísticas, e ambos os efeitos têm potencial de se anularem, com perspectiva de uma alta no curtíssimo prazo e queda no médio abaixo do nível atual.
Para além da questão do petróleo, Wald também avalia que a atividade militar na região, acentuada pela crise no leste europeu, pode afetar o abastecimento de grãos, ferro gusa e interromper o fluxo logístico no mar Negro.
Risco para países emergentes supera oportunidades
André Moura, sócio da NAU Capital e representante do multi-family office na Europa, argumenta que, apesar de o principal cenário ser de um embate no campo diplomático e pouca chance de um conflito direto, “a gravidade dos efeitos para o mundo é bastante grande”.
O motivo é que, além da Rússia e Ucrânia, há envolvimento americano, tornando este um antagonismo de proporções nucleares, ainda que sejam remotas estas chances.
Para o especialista, a exemplo da invasão da Crimeia, em 2014 por tropas russas, é possível que a crise no leste europeu tenha impacto pequeno sobre o preço das commodities, sejam elas minerais ou agrícolas, em comparação com outros setores.
“Qualquer que seja a postura da Rússia que gere algum tipo de sanção por parte dos Estados Unidos e do resto da Europa, estas devem recair em segmentos como o de tecnologia e de finanças”, afirmou ao Suno Notícias.
“No caso de um conflito ou tensão que implique sanções, o impacto, em relação a preços de commodities, é algo possível, mas não é certo, já que não aconteceu em um evento semelhante, que foi o de 2014”, completou.
Entretanto, ele ressalta que as atuais condições não são as mesmas e lembra que, hoje, há preocupação maior dos principais bancos centrais com o processo inflacionário acelerado. “Em um mundo que tem um nível absurdo de preocupação com a inflação [o aumento de preços das commodities], seria verdadeira tragédia”, avalia.
Segundo Moura, entre os setores que poderiam ser afetados, a Rússia tem papel de destaque tanto na produção de óleo e gás, quanto na extração mineral de paládio, níquel e alumínio, enquanto a Ucrânia, por sua vez, é influente na produção de milho e trigo.
Segundo o sócio da NAU Capital, “para efeitos de Brasil a gente tem alguns pontos positivos e outros negativos”.
Entre os efeitos favoráveis, ele destaca que a possível saída de alguns produtores do mercado – ou restrição -, favoreceria empresas brasileiras que podem ocupar parte deste espaço.
Por outro lado, Moura avalia que, caso as condições atinjam um nível de tensão a ponto de ensejar sanções comerciais, a aversão a risco dos investidores seria tão grande que haveria fortalecimento do dólar e uma fuga de capital de países em desenvolvimento e com mais risco como o Brasil.
“O Brasil poderia, no limite, ocupar algum espaço, mas acho que seria mais desfavorável do que bom”, avalia sobre a crise. “Seria ruim para todo mundo, mas especialmente ruim para os países emergentes e em desenvolvimento.”
Cenário pressiona preço de commodities, mas há fatores além da Ucrânia que importam mais
Fernanda Cunha, analista de renda variável da AZ Quest, observa que o pior desdobramento econômico do imbróglio entre Ucrânia e Rússia seria a imposição de sanções pesadas e a interrupção do fornecimento de gás para a Europa, que importa da Rússia 32% do que consome.
Para a analista, a imposição de embargos duros à Rússia contraria os interesses de grande partes dos países europeus, que atualmente estão às voltas com medidas de controle da inflação e não desejariam ver um aumento de preços relacionado ao custo de energia.
Ainda assim, Cunha ressalta que o impacto da crise seria transitório, uma vez que há cadeias estabelecidas de suprimento da commodity. Entre as alternativas, a Europa poderia substituir pela importação gás natural liquefeito embarcado, importado em navios, e a Rússia redirecionar a sua produção à China por um preço abaixo do valor de mercado.
Para a especialista, há outros fatores mais relevantes que afetam a cotação dos derivados de petróleo, entre eles a frustração com a promessa da Opep em aumentar a produção, e a perspectiva de os Estados Unidos bombearem uma quantidade maior de shale, caso seja necessário. “Isso tem gerado impactos maiores no preço do óleo do que a crise entre Rússia e Ucrânia”, afirmou ao Suno Notícias.
Por isso, analista entende que o cenário estrutural deste mercado está “muito ruim”, e defende que o preço do gás está sujeito à volatilidade maior que a cotação do petróleo, em especial, caso se confirme esse período de transição de importações.
Sobre as perspectivas das commodities agrícolas, a possibilidade de problemas logísticos e de embargo com o agravamento da crise afetarem o preço de grãos existe, mas é ainda mais passageira. O motivo é que a Ucrânia conclui a colheita da safra e o processo de exportação em fevereiro.
“O hemisfério norte começa a produzir entre abril e maio. Pode ser que, se houver uma interrupção de duas semanas, haja tempo suficiente para o mundo comprar fertilizantes até lá. Dependeria das sanções”, afirmou.
Cunha também destaca que para o mercado agrícola há outros fatores mais importantes que estão fazendo preço. O principal deles é a estiagem no sul da América do Sul que afeta a produção de soja, em primeiro lugar, e de milho.
“Para as empresas produtoras de commodities no Brasil, [este cenário] é positivo. Nos preços das commodities vai haver um prêmio de risco. Já para a inflação, é negativo”, resume sobre a crise na Ucrânia.