A situação que remete a um passado sombrio assusta. A crise hídrica que assola o Brasil chama atenção pela gravidade — não inédita nos últimos anos — e também pela possibilidade de racionamento de energia elétrica, para afastar a possibilidade de apagão, como ocorreu em 2001.
Essa é mais uma das incertezas que rondam a economia brasileira em meio à expectativa de recuperação do pós-pandemia. Os impactos da Covid-19 ainda são latentes, embora o Produto Interno Bruto (PIB) já tenha dado sinais de vida. Mas um racionamento de energia poderia levantar novas dúvidas.
A decisão, contudo, não é fácil, por vários pontos de vista.
“Existe um preço político e econômico muito grande em realizar o racionamento de energia”, comenta Priscila Araújo, gestora da Macro Capital, ao Suno Notícias. “Haverá incentivos para estressar o sistema ao máximo antes de tomar essa decisão.”
O Ministério de Minas e Energia tem negado o risco de um racionamento e assegurado o abastecimento. Nesta semana, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, chegou a dizer que o Brasil teria “um período educativo” de racionamento, mas logo depois voltou atrás.
Situação recorrente
O Brasil já esteve em situações de crise hídrica similares nos últimos anos, como em 2014, 2015 e 2017. Em todos estes momentos, houve a decisão de não colocar o racionamento em prática, uma vez que o Brasil já estava em crise e buscava sair da recessão econômica.
Para a gestora, a decisão por forçar o menor uso de energia elétrica no País depende de uma série de fatores, inclusive o inverno, iniciado nesta semana, quando as pessoas tendem a consumir mais energia, pressionando os preços.
“O que está acontecendo agora é que todo custo a mais no sistema deve ser repassado às tarifas”, afirma a gestora. “O despacho das termelétricas, por exemplo, aumenta muito o custo da própria energia, o que deve ser refletido nas tarifas, como em 2001.”
Na última semana, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) disse que vai reajustar o preço da tarifa da bandeira vermelha 2, que está em vigor no país e é a mais cara. Atualmente, o custo é de R$ 6,24 pelo consumo de 100 kw/hora, e esse montante pode ficar até 20% maior.
Especialistas ouvidos pela reportagem do SUNO Notícias entendem que a chance de racionamento agora é baixa, mas os riscos ficam latentes para 2022.
“Talvez o risco maior seja no ano que vem”, diz Gustavo Carvalho, gerente de Preços e Estudos de Mercado da consultoria Thymos Energia. Segundo ele, a carga, ou seja, a demanda, ainda está baixa por conta dos impactos da pandemia ao longo do ano passado, o que acabou gerando acúmulo de energia.
Entretanto, a depender de como seguir o programa de vacinação da população, “a economia tem tudo para retomar mais rápido e, consequentemente, demandar mais energia“, diz o especialista.
Se não houver racionamento de energia, blackouts estão no radar
O especialista diz que o racionamento de energia ainda está distante, com a carga ainda dando conta da demanda nos próximos meses, mas que a situação pode trazer outros resultados.
“Um reflexo do fraco regime de chuvas e descasamento do sistema, com a intermitência das geradoras renováveis e maiores custos e limitações das térmicas, são blackouts em horários de pico, como já aconteceu em alguns estados.”
À procura de mitigar os problemas, o governo tem procurado criar horários específicos e dispersos para a produção das empresas. Com disparidade da maior carga durante o dia, isso poderia aliviar os momentos de maior demanda, “mas não resolve o problema da falta de energia“, segundo o especialista.
“A demanda será a mesma, somente mudará a ponta, ou seja, o momento do dia em que a carga será altíssima dada a disponibilidade”, comenta Carvalho.
A ideia tem sido manejar os recursos hidrelétricos autorizados pela regulamentação entre os reservatórios mais cheios e os mais vazios, como os do Sudeste.
O cenário do sistema — e o bolso dos usuários — é ainda mais prejudicado quando as fontes de energia renovável, como eólica e solar, passam por intermitências de produção, comentou o especialista.
Nessa situação, a disponibilidade de energia é compensada pelas hidrelétricas, que são o alvo da crise atualmente, e pelas termelétricas. As usinas movidas a gás têm menor capacidade produtiva e mais demorada geração de energia.
Com isso, as atenções são voltadas às movidas a diesel, mais custosas. Todas as termelétricas do Brasil devem ser acionadas até dezembro.
Racionamento de energia na recuperação econômica
Segundo o especialista da Thymos, existe, de fato, um impacto direto da falta de energia na economia. A consultoria diz que ainda não modelou a elasticidade entre os dois fatores, ou seja, de que forma, numericamente, um racionamento ou apagão podem impactar percentualmente o PIB do ano.
Contudo, certamente o primeiro impacto apareceria na inflação, por meio das tarifas, e para as indústrias que contratam energia no mercado livre, pois teriam de arcar com custos maiores e, consequentemente, repassar aos consumidores.
Caso empresas e indústrias tenham sua produção limitada, também reduzirão os investimentos privados — uma das variáveis do cálculo do PIB.
Reflexo dessa decisão é a menor criação de empregos, com uma taxa de desocupação na máxima dos últimos anos, pesando sobre a geração de renda da população.
“O aumento de tarifas é muito ruim, não só por conta da inflação, mas porque atinge de forma mais intensa as camadas mais pobres da população, que é a base no País em termos de consumo”, diz Araújo, da Macro Capital.
A gestora enxerga um cenário desafiador para este ano, com variáveis que podem impactar as projeções de crescimento de 2021.
Entretanto, “uma influência mais forte na economia é possível, mas não vemos como provável”, pondera a especialista, afastando a ideia de racionamento (ou apagão) de forma ampla e duradoura, ao menos no curto prazo.
Influência da crise hídrica nas empresas do setor
As empresas ligadas ao setor de energia elétrica são amplamente representativas no Brasil, representando quase 6% do Ibovespa. As companhias que fazem parte do índice são:
- Equatorial (EQTL3);
- Eneva (ENEV3);
- Eletrobras (ELET3);
- Cemig (CMIG4);
- Energisa (ENGI11);
- Engie Brasil (EGIE3);
- Taesa (TAEE11);
- CPFL Energia (CPFE3);
- EDP Brasil (ENBR3);
- Copel (CPLE6).
As empresas mais impactadas, de longe, são as geradoras hidrelétricas. Em relatório, a XP apontou a AES Brasil (AESB3) e Cesp (CESP6) como as mais influenciadas. A Ômega (OMGE3), geradora eólica, está na outra ponta. Por ser 100% renovável, deve passar pela crise em normalidade.
Nesse sentido, as atenções devem ser voltadas ao GSF, sigla em inglês para o risco hidrológico, que demonstra a diferença entre a energia efetivamente gerada pelas usinas hidrelétricas e a sua garantia física.
Hoje, o indicador está em 84% no Brasil, abaixo das garantias físicas. A Thymos calcula que no médio prazo o indicador estará em 74%, pressionando ainda mais as geradoras.
Do outro lado, as empresas ligadas à transmissão de energia são as menos impactadas. Isso ocorre pois os contratos, normalmente reajustados pela inflação, são modelados com base na disponibilidade das linhas de transmissão, não no volume de energia.
Carvalho, da Thymos, diz que, de forma geral, o risco maior fica com as empresas descontratadas em energia. Nas comercializadoras, é possível que elas não tenham preenchido todo o portfólio de carga demandada. Futuramente, elas serão impactadas com um PLD (Preço de Liquidação das Diferenças) mais alto.
Do ponto de vista energético, o Brasil está em uma situação muito diferente da observada no início do século. No entanto, o País está entrando no período de seca com os reservatórios nacionais em 32% da capacidade. O ONS terá de decidir a política operativa dos próximos meses com a sombra do racionamento de energia.