Correios: Entraves legais colocam em xeque ideia de privatizar 100%
A privatização dos Correios está na pauta do governo, mas existem vários sinais de que a intenção de privatizar 100% da empresa não será nada fácil. Um exemplo foi a declaração do procurador-geral da República, Augusto Aras, sobre a inconstitucionalidade da venda de totalidade dos Correios. Conforme a pauta da desestatização avança, mais problemas surgem.
Há vários entraves que precisam ser superados para que a privatização dos Correios saia do papel. Confira quais são eles, na visão de especialistas consultados pelo SUNO Notícias:
- Inconstitucionalidade da venda total da empresa;
- Contratos trabalhistas existentes;
- Falta de exemplos de sucesso no exterior.
A privatização é inconstitucional?
A Constituição da República de 1988 consagra diversos serviços públicos da União. Alguns podem ser prestados diretamente pelo Estado ou podem ser transferidos à iniciativa privada por meio de concessão, como por exemplo, o transporte público.
Há também outro tipo de serviço, como educação e saúde que pode ser prestado pelo Estado e pela iniciativa privada. No entanto, nenhum desses casos se aplicam aos Correios.
Para entender a declaração de Aras, é necessário ver a Constituição, que estabelece no artigo 21, inciso X, que “compete à União manter o serviço postal e o correio aéreo nacional”. Isso significa que apenas o governo federal pode executar e explorar o serviço postal.
“Tem regimes diferentes, e, no caso do serviço postal, é um tipo de serviço que a Constituição não abriu a possibilidade de prestação por particulares. A Constituição faz essa distinção em relação ao serviço postal, por uma razão óbvia, por ser um serviço de natureza estratégica para o País”, disse o advogado Rafael Valim, doutor em direito administrativo e sócio do Warde Advogados.
Para que a venda de 100% dos Correios aconteça, seria necessário alterar a Constituição por meio da Proposta de Emenda Constitucional (PEC). Mas o advogado alerta que essa a alteração não é tão fácil assim.
“Em tese teria que alterar a própria Constituição para permitir essa privatização. Isso seria através de uma PEC. O que é bem mais difícil do que aprovar uma lei, o rito do procedimento é muito mais complicado, você precisa de uma maioria mais ampla no Congresso, e, isso não é tão simples.”
É válido lembrar que, em fevereiro deste ano, a Câmara dos Deputados entregou um Projeto de Lei n. 591/21 ao governo federal que autoriza a exploração de serviços postais pela iniciativa privada.
O texto determina que a União mantenha para si uma parte dos serviços. Porém, a própria União já determinou a venda de 100% da operação dos Correios, e nesse caso, o projeto de lei também precisaria ser alterado.
Contrato trabalhista é tema crucial
Outra questão que o mercado procura entender é como uma empresa privada assumiria a gestão de empregados públicos e o que isso implicaria na vida dos trabalhadores dos Correios. A advogada trabalhista e sócia do Chenut Oliveira Santiago Advogados, Mariana Machado Pedroso, explica que não muda muito, isso porque esses funcionários também são regidos pela CLT.
Portanto, segundo a advogada, se hoje o empregador é o Estado e amanhã é a iniciativa privada, continua havendo um contrato de trabalho sem interrupção. Pedroso relembra que há um dispositivo na CLT que fala que as mudanças do empregador não podem interferir no contrato de trabalho.
“Então, quando a gente faz uma análise conjunta de alguns princípios dos direitos do trabalho, a gente observa que, ainda que haja privatização, a alteração desses contrato vai ser limitada.”
Ou seja, quem assumir os Correios não poderá reduzir salários e suprimir benefícios. Mas é válido lembrar que os empregados dos Correios têm mais benefícios do que a própria lei impõe, então, não seria surpresa que a iniciativa privada iniciasse o movimento de Plano de Demissão Voluntária (PDV).
“Isso faz com que haja esse movimento de desligamento. Porque você não pode reduzir a sua folha de pagamento, mas a lei não te impede de contratar outras pessoas numa condição menos favorável, isso acaba auxiliando esses planos de desligamento voluntário.”
Segundo a advogada, as empresas fazem esse movimento com objetivo de se tornarem mais competitivas.
Nesse quesito, os Correios ainda podem se tornar desinteressantes para as companhias privadas, como Magazine Luiza (MGLU3) e Amazon que manifestaram interesse, visto que o relator do projeto de desestatização, o deputado Gil Cutrim, prevê estabilidade de 18 meses aos servidores a partir do momento da privatização.
Ele também prevê um Plano de Demissão Voluntária com o período de adesão de 180 dias, indenização de 12 meses do salário e programa de requalificação para os mais de 100 mil funcionários.
A privatização de 100% dos correios vai na contramão do exterior
No exterior, não é incomum a privatização dos Correios, porém alguns dos países decidiram manter algum nível de controle sobre a empresa. Já o exemplo do país vizinho, a Argentina, que desestatizou 100% dos serviços postais, se arrependeu e voltou atrás.
Canadá, Rússia e Estados Unidos são exemplos de países com grande extensão territorial, assim como o Brasil, e que mantêm serviços postais locais completa ou parcialmente sob o comando governamental.
Países de menor extensão territorial como Alemanha, Argentina e Portugal são exemplos que tiveram seus serviços postais privatizados.
A Alemanha é um exemplo de privatização total bem-sucedida, mas o processo ocorreu em etapas ao longo de quase 10 anos.
“A Alemanha é considerada por alguns como o caso de privatização mais bem-sucedido, em se tratando de serviços postais. O processo foi realizado em etapas a partir de 1989, mas ainda com maior participação do Estado. A DHL foi adquirida em 2002 e agora é uma divisão da Deutsche Post”, analisou o CEO e fundador da Intelipost, Stefan Rehm.
Já o Correios de Portugal (CTT) foi privatizado entre 2013 e 2014. Porém, a agência responsável pelo acompanhamento dos níveis de serviços prestados pela empresa privada já acionou mecanismos para compensar a má qualidade do serviço prestado pelo CTT. Já teve início por parte de alguns parlamentares e centrais sindicais uma discussão sobre a possibilidade de retomada do controle dos serviços pelo o Estado.
Na Argentina, a Empresa Nacional de Correios e Telégrafos S.A (Encontesa) foi privatizada em 1997. Quatro anos depois, em meados de 2001, uma investigação jornalística indicou que a SOCMA pagou ao Estado apenas o que estava previsto no primeiro ano da concessão, e o Estado retomou o controle da companhia em 2003, por conta de escândalos de corrupção que envolviam a empresa privada.
“É só no Brasil que estão com essa vontade extraordinária de privatizar os Correios. Mas a onda global é de nacionalização de serviços porque já viram que em muitos casos a entrega privada não funciona. Então é preciso ter uma visão mais objetiva e clara”, concluiu o advogado Valim.