Se 2020 será lembrado como o ano do coronavírus (covid-19), ele também vai passar nos livros de história como o ano da grande corrida ao ouro. A cotação do mineral precioso chegou rapidamente aos US$ 2 mil (cerca de R$ 10 mil) por onça, superando seu recorde histórico.
A cotação do ouro acabou inflada pelas anomalias no mercado desencadeadas pelo coronavírus. Anomalias que ainda não desapareceram e que ainda podem levar a situações extremas, mesmo que especulares, como o preço negativo do petróleo WTI registrado no final de abril.
Se no caso da cotação do petróleo a razão dessa anomalia tinha sido o excesso de oferta diante da capacidade insuficiente de armazenamento disponível, no caso dos lingote o preço está disparando devido à escassez de metais facilmente entregáveis nos armazéns da Comex, a bolsa de futuros de Nova York.
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E o preço poderia aumentar ainda mais se, no vencimento de um contrato de futuros, houvesse muitos investidores que optassem por fechar a posição ao receber o ouro. As famosas “bullion bank“, bancos especializados em transações no mercado de ouro, correm o risco de não ter metal físico suficiente para atender a demanda.
Na prática, seria algo como uma nova corrida ao ouro. Ou, pior, uma corrida às agências bancárias. Se um grande número de correntistas começa a sacar depósitos, o dinheiro disponível não é suficiente para satisfazer a todos.
Para os bancos de ouro o mecanismo funciona da mesma maneira: o ouro que eles possuem não está disponível fisicamente no local, pois é amplamente utilizado para outras atividades financeiras.
Até alguns meses atrás, esse cenário seria impensável, mas esta semana – com o vencimento do futuro de agosto – essa corrida aos bancos de ouro chegou perto de se concretizar.
E o risco está destinado a reaparecer, pelo menos enquanto as distorções atuais permanecerem no mercado. Por um lado, o grande número de operadores que usam a Comex para obter ouro físico. Do outro, a extrema exposição curta das bullion banks na mesma Bolsa de Valores, que atingiu quase US$ 50 bilhões.
Entenda as causas da subida da cotação do ouro
A Comex (de propriedade do Cme Group, assim como a Nymex, onde ocorreu a cotação negativa do petróleo WTI) não está funcionando como deveria desde 23 de março. Uma data que coincide com o início do lockdown em Londres e que é imediatamente seguinte ao fechamento de importantes refinarias de ouro na Suíça por causa do coronavírus.
Com a logística do ouro no caos e a cadeia de suprimentos interrompida em vários lugares, a transferência de ouro de um mercado para outro tornou-se repentinamente muito difícil e muito cara.
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Para complicar tudo, também foi o fato da Comex aceitar lingotes diferentes dos mais comuns em Londres: pesando 100 em vez de 400 onças.
Foi então que o mercado futuro de Nova York “divorciou” do de Londres, que é basicamente estável. Para atrair o metal precioso através do Oceano Atlântico, as cotações nos EUA tiveram que subir muito além dos preços à vista na capital britânica.
O spread entre as cotações nas duas praças financeiras – historicamente quase inexistente – aumentou para US$ 100 a onça e nunca desapareceu completamente. Mesmo que hoje o primeiro vencimento de futuros em Nova York custe menos que o preço à vista de Londres, o valor de contratos seguintes (que se tornaram mais líquidos) permanece mais alto.
Afinal, as leis de mercado criaram a situação e os riscos atuais: em Nova York, graças a essa situação, chegaram avalanches de ouro. Desde março, os estoques da Comex quadruplicaram, atingindo níveis recordes: mais de 1.000 toneladas.
Destes, no entanto, apenas 40% estão fisicamente disponíveis. E, nos últimos meses, a retirada de metais do mercado de ações também aumentou enormemente: um fenômeno talvez ainda mais anômalo do que o aumento das entregas.
Em junho, 171 toneladas de lingotes foram retiradas da Comex: houve um total de 55.102 entregas, contra as 6-10 mil mensais que normalmente ocorreram até o ano passado. As demandas continuam sendo muito altas e foi exatamente isso que suscitou temores de incapacidade de satisfazê-las.
A culpa é dos outros
Quem pega ouro através da Comex – evitando de assumir posições, como normalmente acontece, vendendo futuros que estão vencendo e comprando outros com vencimentos mais longos – é, acima de tudo, uma categoria de operadores financeiros: os “outros”.
Uma classificação insólita feita pela Commodity Futures Trading Commission (Cftc) dos Estados Unidos. Esses operadores não são bancos, corretores ou fundos de hedge, mas geralmente escritórios familiares e grandes investidores individuais.
São eles que podem colocar as bullion bank em dificuldade. Os bancos de ouro, por sua vez, são classificadas como “Swap Dealers“: uma categoria que atualmente possui 70% das posições vendidas na Comex, uma exposição também anormal.
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O fato de esses bancos venderem ouro em Nova York é normal, pois é assim se cobrem das compras que fazem em Londres. As operações geralmente se compensam e os preços nas duas praças financeiras se alinham. Mas tudo mudou com o coronavírus. Quando os dois mercados começaram a divergir, esse tipo de estratégia ficou cheia de incertezas e riscos.
Por um lado, os bancos começaram a se retirar do Comex (fechando as posições com a entrega de ouro). Do outro, provavelmente começaram a especular sobre o spread Londres-Nova York. A arbitragem favorável atraiu muitos operadores, gerando importações recordes de ouro para os Estados Unidos, principalmente da Ásia, onde a demanda pelo precioso mineral – novamente devido ao Covid19 – diminuiu.
O que incentiva a especulação também é o contango criado na Comex: o ouro para vencimentos distantes custa mais caro que o ouro à vista. Mais uma razão para acumular ações e uma a menos para recuperar posições: o que deixa o chamado “rolling” muito caro.
Entre entregas e retiradas recorde, a Comex perdeu grande parte de suas características de mercado financeiro para se tornar uma espécie de supermercado de ouro.
Entre as razões para essa “mutação”, é provável que haja também o boom das ETFs. O sucesso desses instrumentos financeiros é impressionante e, durante meses, resultou em uma demanda sem precedentes de ouro pelas empresas emissoras, o que talvez esteja se tornando difícil de satisfazer.
Segundo um cálculo do World Gold Council (Wgc), somente em julho, as ETFs acumularam mais de 160 toneladas do metal, desde o início do ano reservaram quase 900 toneladas. Volumes comparáveis a metade da produção mineral no mesmo período e maiores que aqueles de todo o ano de 2009, que até agora tinha sido um ano recorde para os ETFs de ouro.
A fome de ouro dos ETFs é tão grande que, por si só, poderia colocar o sistema em crise. Pelo menos uma emergência já ocorreu este ano, quando o Spdr Gold Trust, o maior ETF do mundo do metal precioso, teve que adquirir lingotes contratando o Banco da Inglaterra.
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Em suma, o ouro ainda poderia aumentar sua cotação em maneira exponencial. O valor do mineral precioso poderia subir ainda mais com essas anomalias do mercado. Entretanto, a incerteza provocada pelo coronavírus não permite realizar uma previsão clara sobre o que poderia ocorrer com um ativo que desde sempre atirou a atenção de especuladores e investidores.