Venture philantropy: prática existe, mas potencial é ainda maior
Há menos de um mês, uma iniciativa filantrópica chamou a atenção no mercado brasileiro: o CEO do Grupo Gaia, João Paulo Pacífico, anunciou a doação da empresa a uma ONG de mesmo nome, para focar a atuação em projetos de impacto social. A doação do grupo, que atua no mercado financeiro há 13 anos, ajudará no desenvolvimento de projetos envolvendo moradia popular, produção de alimentos pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e produção agrícola em áreas indígenas e quilombolas. No novo negócio, os sócios deixam de serem donos e passam a atuar como funcionários.
Este é um dos exemplos mais recentes e emblemáticos de uma gestão que tem como inspiração o venture philantropy — modelo que pretende aliar competências das indústrias de private equity e venture capital ao terceiro setor. Trata-se de uma tendência que vem se fortalecendo no mundo, sobretudo pela necessidade de o setor produtivo de oferecer respostas a questões cada vez mais urgentes, como a crise climática e o combate à fome e desigualdade social, para citar apenas alguns exemplos. Nessa lógica, o retorno financeiro pode ser uma consequência, mas não premissa — o foco é o social.
Nos Estados Unidos, onde a indústria de venture capital é mais desenvolvida, assim como a cultura da filantropia, esta prática é mais comum. Iniciativas de apoio a comunidades carentes, causas ambientais, de inclusão social e apoio a universidades são tradicionalmente financiadas por empresas ou famílias, que doam suas fortunas em vida ou com a promessa de fazê-lo após a morte. Um exemplo concreto é o “The giving pledge” (promessa de doação, em tradução livre), organização filantrópica fundada em 2010 por Bill Gates, Melinda Gates e Warren Buffett, que incentiva a doação de grandes fortunas a causas beneficentes.
Um caso mais recente, e bastante representativo, foi a doação da Patagônia, marca de roupas para atividades ao ar livre, pelo bilionário e fundador, Yvon Chouinard. Segundo o The New York Times, Chouinard, de 83 anos, poderia vender a marca ou cotá-la na bolsa, mas optou por abrir mão do controle da companhia, avaliada em cerca de US$ 3 bilhões e sediada na Califórnia. A marca sempre buscou adotar práticas de ‘fair trading’, investindo em matérias-primas de origem socialmente responsável, com o mínimo de impacto ambiental e maior qualidade de vida dos trabalhadores. A doação da empresa coroa o esforço que Chouinard vinha fazendo desde a criação.
Ao voltar os olhos ao Brasil novamente, temos que considerar que nosso histórico de filantropia ainda está relacionado a eventos pontuais e temáticos, vide ‘Criança Esperança’, ‘Teleton’, campanhas de doação de agasalho no inverno e de brinquedos no Natal. por exemplo. Culturalmente, e de forma geral, somos mais imediatistas e reagimos a causas específicas ou urgentes. Faltam iniciativas com continuidade, que permitam um maior planejamento e análise de perspectivas. Esse panorama se dá por diversas razões: pelo nível estruturalmente alto da taxa de juros, baixa poupança e a ideia errônea de que só famílias abastadas podem praticar a filantropia.
A despeito disso, e na esteira do mundo, há movimentações peculiares e que fogem a essa regra, como a própria dação do Grupo Gaia, citado na abertura deste texto, e de outros exemplos que reforçam um amadurecimento da cultura do fazer o bem. Temos também a atuação do vencedor do Nobel da Paz de 2006, Muhammad Yunus, considerado o ‘pai do microcrédito’ e dos negócios sociais. Os projetos pelo mundo, que incluem o Brasil, implicam na captação de dinheiro de investidores, e a devolução, ainda que com rentabilidade menor que uma aplicação financeira tradicional, para o incentivo de projetos sociais e ambientais.
Para citar mais um exemplo, temos a Alia Social, solução conhecida como ‘Tinder’ das ONGs, que dá ‘match’ entre o perfil do investidor e causas de maior afinidade. Nesse caso, o objetivo é ampliar o impacto socioambiental de empresas e pessoas físicas através do voluntariado corporativo. Por fim, outra iniciativa relevante foi o lançamento do Instituto Órizon, em meados de março do ano passado. A formação original contava com os fundos Carlyle, Pátria, Vinci e Warburg Pincus. Em dezembro de 2021, a entidade fez um aporte de R$ 700 mil, a ser investido ao longo de três anos nas organizações sociais Colégio Mão Amiga, Pró-Saber SP e Rede Cruzada, de educação para crianças e jovens vulneráveis.
O panorama atual no país é muito mais animador e capilarizado do que de um passado recente. Há algumas décadas, quem quisesse desenvolver um novo negócio tinha que ia ao banco emprestar dinheiro, ou recorrer às posses da família ou próprias. Atualmente, uma boa ideia, de produto ou serviço, é relativamente factível de conquistar financiamento de fontes diversas. Cada iniciativa citada tem uma proposta distinta, com ênfases também diferentes, inclusive no que diz respeito à relação entre retorno financeiro e apoio às causas sócio-ambientais. O investidor de cada uma delas tem o poder de se informar e decidir qual causa quer adotar. Filantropia não é um cheque em branco. A lógica da doação, assim como a do investimento, pressupõe transparência nos projetos e no modelo de gestão.
Já o perfil do investidor é igualmente diverso ao crescente cardápio de oportunidades — basta ter sensibilidade às boas práticas sociais e ambientais. Nesse hall, estão empresas, fundos de pensão, bancos, e também você, pessoa física. Há tempos, ser bilionário não é um pré-requisito. Além de dinheiro, vale considerar a possibilidade de doar tempo, ou seja, de dedicar habilidades especializadas a instituições que precisem delas. Governos de diversas inclinações políticas podem e devem se beneficiar dessa nova onda de altruísmo como forma de aperfeiçoar programas e atividades. No atual contexto, a emergência da sigla ESG (Social, Ambiental e Governança, em português) sobretudo entre a nova geração — mais atenta e aderente às causas desse tipo — tem dado tração a essas práticas. A intenção de ajudar e ter participação ativa na construção de um mundo melhor, mais justo e menos desigual, é o fator que agrega todos os agentes dessa jornada que é tão longa, quanto permanente.