O roteiro padrão do empreendedorismo brasileiro
Imagine que você decidiu se aventurar na cozinha para fazer aquele pudim de leite bem gostoso. Pede indicação de receitas para a melhor confeiteira que você conhece, que passa uma receita fantástica…para um bolo de chocolate. Não precisa ser conhecedor para saber que seguir a receita do bolo de chocolate não te levará ao pudim.
Uso o paralelo culinário com uma licença para ilustrar hoje o ecossistema de startups brasileiro: na última década do empreendedorismo, moldamos uma cultura de roteiros fixos, e uma visão única do que é sucesso. Desde o momento de ideação das empresas, os empreendedores se deparam com múltiplos mandamentos – as regras que os ajudarão a crescer o negócio, conquistar investimentos e criar um unicórnio.
Mas ignorar as aspirações individuais de cada negócio em prol da Cartilha-mágica é prejudicial para a diversidade dos negócios (ou, voltando ao bolo, não adianta seguir a receita do bolo de chocolate se você quer comer pudim!).
Desmistificando a regra nº 1: o tal Sanduíche das Ilhas Cayman
Uma parcela considerável das empresas brasileiras, com operações no Brasil, estão sendo constituídas no exterior em uma estrutura jurídica conhecida como “Sanduíche de Cayman”: com uma Holding em Cayman, uma LLC em Delaware e uma empresa operacional no Brasil:
Queridinha de muitos fundos de Venture Capital, a estrutura do Sanduíche de Cayman é recomendada por facilitar ao empreendedor a captação de recursos externos, além de simplificar a questão tributária (ainda que, com a recente MP de tributação de receitas do exterior, a eficiência tributária fique em xeque).
Antes de seguir a manada do famoso Sanduba, é importante o empreendedor brasileiro ter em mente:
1. Qual o perfil de seu investidor?
Além de fundos estrangeiros que alocam capital na América Latina, alguns dos fundos brasileiros, com operação in loco, estruturam fundos no exterior também. O empreendedor deve analisar se deseja captar recursos, e qual o perfil de investidor que deseja em seu captable. Temos muitos fundos, micro VCs e grupos de investidores com atuação local, que não demandam a complexidade de estruturar societariamente a empresa offshore.
2. Qual a tese de saída do negócio?
Já escrevi anteriormente sobre um comparativo entre Estados Unidos e Brasil. Um dos principais diferenciais está na grandeza do mercado de capitais. Enquanto nos EUA, 43% das empresas listadas na Bolsa são VC-backed, no Brasil são menos de 2%. O nosso principal contexto de saída dos negócios, portanto, é o M&A – que, de acordo com levantamento da ACE, teve um CAGR (taxa de crescimento anual composta) de 49.5% de 2016 a 2021.
A maior parte dos M&A de startups brasileiras hoje ocorre por incumbentes. Se o empreendedor identifica que as principais sinergias para uma futura aquisição se dariam com empresas brasileiras, uma estrutura offshore hoje acaba se tornando apenas uma complexidade a mais no exit, com horas e recursos jurídicos investidos em trazer a estrutura de volta ao Brasil.
Desmistificando a regra nº 2: a captação via um fundo de Venture Capital top tier
Muitos empreendedores sonham em receber aportes dos fundos de Venture Capital mais famosos. Com certeza ser investido por um investidor top tier representa uma chancela do negócio, e abre importantes portas. Estes investidores, em sua maioria, conquistaram suas posições privilegiadas no mercado e têm muito a oferecer aos negócios – e seus fundadores – para além do capital.
Mas é um erro adaptar os princípios de seu negócio, ou a sua visão do que é sucesso, para atrair o capital de ‘fulano’. O exercício deve ser contrário: onde quero chegar, qual a demanda de capital (se há) e o perfil ideal de investidor para chegar lá. O caminho do VC tradicional é ideal para negócios que demandam crescimento acelerado (o famoso “move fast and break things”): a lógica do crescimento de 30% ao mês, com vista na próxima rodada de captação, sem muita preocupação com a queima de caixa ou sustentabilidade do modelo a longo prazo.
Há muitos negócios saudáveis e bem estabelecidos que cresceram a um ritmo menos acelerado, enquanto temos notícias de negócios que falharam depois de mostrar um crescimento astronômico. Não deve ser a taxa de crescimento a única e, nem sempre, a principal métrica a medir o sucesso de uma empresa qualquer, e isso também é verdade para as startups e outras empresas na trilha do venture capital.
Desmistificando a regra nº 3: o significado de sucesso
Falta diversidade no entendimento do que é sucesso no ambiente de startups. Recentemente completamos uma década da era-unicórnio: quando a Cowboy Ventures cunhou o termo de unicórnio, em 2013, eram 39 empresas coroadas pelo chifre místico. Hoje são 532. Se perguntarmos para uma criança o que ele quer ser quando crescer, é Youtuber (antigamente, astronauta). Se perguntamos para um empreendedor, a resposta será unicórnio?
A ideia de que unicórnio é sinal de sucesso tem duas grandes fragilidades: a primeira é que qualquer negócio tem um objetivo social, e que transcende o valor atribuído a ele, e diz respeito à interação entre a empresa (seu produto, serviço) com a sociedade. O sucesso do negócio deveria ser vinculado a esse objetivo. A segunda fragilidade está no modelo dos unicórnios em si: de acordo com a análise recente da Cowboy Ventures, 93% são unicórnios no papel, sem uma liquidez que valide o valor de mercado. Aparentemente, 40% dos unicórnios estão negociando em secundárias a valor inferior a U$1 bilhão – então a própria premissa do termo não se sustenta.
É essencial a todo empreendedor encarar algumas das regras colocadas por parte do mercado de venture capital como o padrão-ouro das startups, e adequá-las a seu contexto. Existem múltiplos caminhos de empreendedorismo tão válidos quanto a estrada amarela rumo ao unicórnio, mas que não dependem – e por vezes nem se beneficiam – dos mesmos ladrilhos.
Os textos e opiniões publicados na área de colunistas são de responsabilidade do autor e não representam, necessariamente, a visão do Suno Notícias ou do Grupo Suno.