Marco Carnut

O Ano Novo de Satoshi

Bitcoin: o que impressiona é como ao mesmo tempo tanto e tão pouco mudou - ainda continuamos com corretoras piratas, algumas cometendo fraudes escandalosas, tornando muito mais difícil a vida dos que fazem certo. Mas esses últimos construíram um segmento de mercado já avaliado em bilhões de dólares

No dia 8 de janeiro de 2009, Satoshi Nakamoto anunciou, em um grupo de discussão na Internet, que congregava especialistas em criptografia, que a versão 0.1 do seu programa estava disponível para “download”. Dois meses antes, ele tinha publicado um artigo explicando os conceitos por trás da sua invenção (e alguns meses atrás publicamos nesta coluna um artigo sobre isso); naquele dia, porém, terminava sua gestação e começava sua vida: o Bitcoin, oficialmente, havia nascido.

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Essa é, aliás, a primeira coisa que muita gente hoje em dia nem sabe: o Bitcoin, na verdade, é um programa de computador – hoje em dia, seria chamado de “um app”. Essa primeira versão só funcionava no sistema operacional Windows, e, visualmente, era meio sem graça: uma “janela” com uma barra de menu de três opções: “Arquivo”, “Preferências”, “Ajuda”; um botão “Enviar Moedas”, e outro “Livro de Endereços”; um campo dizendo seu endereço bitcoin (para se poder receber fundos), um histórico de transações e seu saldo (que, naturalmente, começavam zerados) e… não muito mais além disso.

O realmente interessante é o que fazia “por debaixo dos panos”: ao ser executado, o programa anunciava sua presença para os demais participantes e passava a receber transações realizadas pelos demais usuários para auditá-las. Se estivessem em estrito acordo com as regras, essas transações seriam passadas adiante; ou, se não estivessem, seriam descartadas.

Ou seja, criava-se um sistema de auditoria e notarização contínua e em tempo real de transações de transferências de valores. Um misto de “cartório virtual” com “diário oficial” com “casa de moeda”, que dava publicidade à criação de novas unidades monetárias e “cheques virtuais” que transferiam essas unidades monetárias entre seus proprietários. Com um crucial ineditismo: como todos conferem as contas, todas as contas sempre batem.

O sistema era de livre ingresso e livre saída: quando você fechava a janela, ele anunciava sua saída e os demais participantes continuavam normalmente. O usuário podia posteriormente executar o programa de novo e ele se coordenava automaticamente com os participantes presentes para saber em que ponto todos estavam e dar continuidade ao trabalho.

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Se usuário fosse no menu “Preferências” e ativasse um botão chamado “Gerar Moedas”, ele participaria também do processo de geração de novas unidades monetárias, apelidada de “mineração”. Poucas horas depois apareciam no seu saldo 50 novos bitcoins que o seu computador criou, com a anuência de todos os demais participantes da rede.

À eṕoca, esses bitcoins só tinham valor como “experimento científico”, mas não tinham valor de revenda – não havia ainda quem quisesse comprá-los usando “dinheiro real”. Pelo contrário, eles tinham um custo – barato, mas não zero – de uns poucos centavos na conta de energia elétrica e do provedor de internet.

Ao longo de 2009, Satoshi permaneceu quase sozinho como o único participante do sistema. De vez em quando aparecia alguém que passava um tempo brincando com o programa, só para perder o interesse pouco depois. Com apenas um ou dois ou três participantes, esse foi o momento em que a rede esteve mais centralizada.

Mas Satoshi perseverou, angariou colaboradores, foi efetuando consertos e melhorias, e, no final de 2009 e início de 2010, a rede passou a ter algumas dezenas de participantes, alguns executando o tal BITCOIN.EXE 24 horas por dia, 7 dias por semana. Esse deve ter sido o momento em que a rede foi mais uniforme, pois todos executavam exatamente o mesmo programa do mesmo autor.

Ninguém lembra exatamente quem foi o primeiro, mas, por volta de 2010, começaram a surgir pessoas e empresas que passaram a comprar e vender bitcoins por dinheiro real. Como era muito
barato produzir bitcoins, podia-se vendê-los por mais que seu preço de custo e ainda assim ter lucro. Alguns oriundos do mercado financeiro montaram sites inspirados nas bolsas de valores, em que se podia cadastrar ofertas de compra e venda de bitcoins, ajustá-las de acordo com as condições do momento e, quando batiam, concretizava-se a operação. Os bitcoins passaram a ter valor de revenda, cotação e preço. Nasceram ali as corretoras, ou “casas de câmbio”, ou “exchanges”, em inglês.

Já naquela época havia uma tendência dos puristas em vilificar as corretoras, e não inteiramente sem razão: muitas eram geridas amadoristicamente, muitas faliram, muitas se provaram ser puras fraudes, piratas em mares virgens.

Mas havia as operações sérias, que levantaram os primeiros questionamentos sobre como tratar bitcoin à luz das legislações financeiras, mercantis e tributárias. Foi graças às corretoras que o bitcoin deixou de ser uma curiosidade científica conhecido só por um punhado de entusiastas para um ativo financeiro cobiçado por milhões de pessoas.

Com efeito, toda uma indústria surgiu daí: os mineradores de criptomoedas, que, hoje em dia, ao computar 147 sextilhões de tentativas para gerar 6,25 novos bitcoins (equivalentes a uns R$ 750 mil) a cada dez minutos em média, imobilizou pelo menos US$ 11 bilhões em equipamento, na forma de computadores de altísimo desempenho (“as máquinas mineradoras”) e infraestrutura associada (eletricidade, arrefecimento, etc.) e toda a P&D pra se chegar a esse ponto – um espetáculo à parte que valerá uma coluna futura. Por hoje, basta lembrar que os mineradores estão abraçados com as corretoras: são eles que, em última instância, as abastecem com novos bitcoins; e são delas que recebem “dinheiro real” para pagar as contas.

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De lá do começo pra cá, o que impressiona é como ao mesmo tempo tanto e tão pouco mudou: ainda continuamos com corretoras piratas, algumas cometendo fraudes escandalosas, tornando muito mais difícil a vida dos que fazem certo – mas esses últimos construíram um segmento de mercado já avaliado em bilhões de dólares; o verdadeiro âmago, processos, objetivos e vantagens das criptomoedas ainda largamente desconhecidas e incompreendidas, por vezes resultando em regulação torpe.

Até hoje a rede bitcoin em si tem por volta de apenas dez mil nós, mas as corretoras de criptomoedas cresceram e se proliferaram a ponto de somarem mais de 100 milhões de usuários: uma relação de dez mil para um que evidencia que a tal “rede descentralizada” foi colocada em um curral de centralizadores locais: a maioria dos usuários hoje tem seu primeiro contato com bitcoin indiretamente através das corretoras, e não com diretamente na rede bitcoin de verdade.

Foi no mesmo e-mail em que Satoshi anunciou que o bitcoin estava disponível para download (procure no Google por “bitcoin v0.1 released” se quiser ler o e-mail original), ele também explicou a agenda de geração de novas unidades monetárias, começando em 50 bitcoins por bloco (a cada 10 minutos em média) e caindo pela metade a cada 4 anos. Fazendo a conta dessa progressão geométrica decrescente, os últimos novos bitcoins só serão cunhados por volta do ano de 2140, o que sugere que ele acreditava que o bitcoin continuaria a existir até lá. Não há muitas pessoas ou instituições no mundo que tenham esse tipo de visão de longo prazo.

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Nota

Os textos e opiniões publicados na área de colunistas são de responsabilidade do autor e não representam, necessariamente, a visão do Suno Notícias ou do Grupo Suno.

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