Marco Carnut

Criptomoedas não valem nada, apesar de valerem muito

Enquanto a regulação não chega, a dica é: prefira as criptomoedas mais bem estabelecidas, que tenham as maiores capitalizações de mercado e tenham aceitação ampla entre as corretoras

Reverberou pela Internet uma entrevista em que Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu, disse que “criptomoedas não valem nada, mas meu filho investe nelas.” Foi um momento delicioso por tantos motivos que convido o leitor a saboreá-los conosco neste artigo. Pode-se achar o vídeo original, de meros dois minutos e meio, procurando no YouTube por “Christine Lagarde College Tour 2022” e escolhendo o que fala sobre a bolha da dívida europeia (“Europe Debt Bubble”). Você pode perfeitamente acompanhar esse artigo sem ter visto o vídeo, mas será mais divertido se tiver.

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O primeiro passo importante é reconhecer que a Lagarde está parcialmente certa: existem, sim, muitos criptoativos cuja proposta de valor é inexistente ou patentemente absurda. O sofisma é que nem todas as criptomoedas são iguais, e tentar colocá-las todas sob um mesmo guarda-chuva é tão absurdo quanto comparar o dólar americano ao dólar de Zimbabué (que de tão desvalorizado chegou a ter uma cédula de 100 trilhões) e sair dizendo que tudo é dólar.

Uma boa parte dessas “cyberroubadas” vem do fato que existem criptomoedas, como o Ethereum, em que criar uma “sub-criptomoeda” (que se tornaram conhecidas como “tokens”) é muito fácil, coisa de cinco minutos. Isso abre um leque imenso para que qualquer pessoa ou grupo, bem ou mal intencionado, que queira levantar capital para alguma coisa, possa criar sua própria “moeda”, definindo regras de emissão, circulação, destruição etc – enfim, bancar o Deus da economia.

Além de um site bonitinho, vídeos promocionais e um bombardeio de marketing, uma maneira comum de aparentar solidez e confiabilidade é tentar convencer alguma corretora de criptomoedas, de preferência famosa, a “listar” o token. As corretoras são assediadas o tempo todo por gente querendo fazer isso, a ponto de ter virado fonte de renda: algumas corretoras cobram somas exorbitantes para listar um token nascente.

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Se o tal token pegasse tração em alguma comunidade grande o bastante, que precificasse seus bens e serviços nela e a usasse todo dia, poderia até dar certo e passar a “ter valor”. Há exemplos de sobra no “mundo real” onde deu muito certo – um dos mais famosos é a moeda “Palmas”, criada pelos moradores do Conjunto Palmeiras, em Fortaleza, no Ceará; ou as várias empresas à la Dotz e Multiplus, cujos “pontos de fidelidade” se parecem tanto com uma “moeda privada” que algumas delas até usam esse termo nas suas chamadas de marketing e só não se autointitulam “criptomoedas” porque suas plataformas tecnológicas são fechadas, ao contrário das criptomoedas, que são abertas.

Mas a dura realidade é que os casos de sucesso são, lamentavelmente, as exceções. A vasta maioria dos “tokens” não pega tração e some do mapa antes de completar um ano, muitas vezes deixando um rastro de investidores no prejuízo; e, pelo o fato de não haver contratos formais e as relações serem transnacionais, o recurso à Justiça se torna, em muitos casos, inviável. É isso que a Lagarde teme que aconteça com o filho dela; e, aqui também, ela acerta ao defender que uma regulação bem azeitada seria útil para garantir requisitos mínimos de confiabilidade a esses projetos.

Enquanto essa regulação não chega, a dica é: prefira as criptomoedas mais bem estabelecidas, de maior longevidade, que tenham as maiores capitalizações de mercado e tenham aceitação ampla entre as corretoras. Essa é a razão pela qual há quem defenda que corretoras realmente sérias só deveriam listar as criptomoedas mais tradicionais, como Bitcoin e Ethereum – para os padrões do mercado financeiro tradicional, os níveis de risco e volatilidade (e retorno!) deles já é considerado alto.

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Mas, como parece haver um público afeito a níveis ainda mais arrojados de risco, muitas corretoras optam por atender ao clamor de seus clientes e listam centenas de criptoativos, alguns vagamente promissores, outros genuinamente mal-assombrados. Se você se inclui nesse grupo, a dica é: não invista todas as suas economias de uma vez só, nem em um ativo só; invista apenas o que realmente pode perder, porque é o que provavelmente vai acontecer.

Onde a Lagarde erra – e erra feio – é que há criptomoedas que têm, sim, fundamentos sólidos e produzem coisas úteis à sociedade. Essas redes de criptomoedas são, na verdade, “cartórios digitais globais”: elas publicam periodicamente novas edições de uma espécie de “diário oficial” (chamado “blockchain”) cujas “páginas” notarizam (entre outras coisas) transferências de propriedade de certas unidades monetárias chamadas – adivinhe! – Bitcoins, Ethers, etc.

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À luz desse entendimento, tentar emplacar que as criptomoedas “não valem nada” (como fez a Lagarde em outra parte da entrevista) soa tão absurdo quanto afirmar que cartórios não servem pra nada ou que a função de “manter o histórico de transações” dos bancos é inútil. Se não servissem, por que temos tantos cartórios e bancos?

Afinal, são eles a quem recorremos quando queremos saber se uma transação de fato ocorreu, se foi mesmo “oficializada”; eles produzem a “confiabilidade” que lastreia os negócios jurídicos e transações financeiras sob os quais os países civilizados se apoiam.

Esses “sistemas de oficialização” das criptomoedas sérias recriam essa mesma confiança, só que através da internet global, usando processos automatizados, abertos e auditáveis. Os blockchains estão para as plataformas financeiras tradicionais tal como os carros elétricos estão para os de motores a combustão: por fora parecem iguais, mas internamente o motor é totalmente diferente, e muito melhor. É por isso que há quem sonhe em “abolir advogados” ou criar “países soberanos baseados em blockchains”. Ainda estamos longe disso, mas é menos absurdo do que parece – falaremos disso em artigos futuros.

Em todo caso, essa é a uma confusão comum, raiz de muitos mal-entendidos: confundir “criptomoedas” com “o mercado de criptomoedas”; achar que criptomoedas são apenas ativos financeiros especulativos, que foram criadas para isso e só servem para isso. Não é o caso; existem cadeias produtivas grandes e crescentes ao redor de certas criptomoedas, tal como existem cadeias produtivas gigantes ao redor dos cartórios e bancos. Informar-se bem sobre elas é o que distingue os investidores hábeis dos incautos e é por isso que há cada vez mais investidores apostando nelas.

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A Lagarde não erra por ignorância; ela sabe muito bem de tudo isso. O que ela quer é que você não saiba: o discurso de “evitar as criptomoedas” para “praticar o que prego” é tão somente o ardil previsível do monopolista que não quer que você conheça a “concorrência”. É o fabricante do carro a combustão dizendo que o carro elétrico não presta, mas não tão discretamente começando a fabricar os seus próprios. Como ela mesma disse na entrevista, “monitora cuidadosamente” a criptosfera através do filho dela, que é “livre” para investir – tal como você.

No final, a entrevista da Lagarde não só acabou se tornando um belo sumário das tensões culturais, históricas e inter-geracionais que permeiam o assunto, mas também uma das melhores propagandas que a criptoeconomia poderia receber: uma ótima maneira de estimular alguém a apertar o botão vermelho é dizer “não aperte o botão vermelho.” Vive la liberté!

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Nota

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Marco Carnut

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