O caso Evergrande: uma doença criada pelo governo da China e que ele terá que remediar
Um amigo meu certa vez me disse que “capitalismo é sempre capitalismo, ainda que seja praticado pelo próprio Estado” e, nessa discussão, citou a China como exemplo. De fato, há alguma razão em chamar a China de capitalista. Via de regra, ela tem uma economia orientada para preços de mercado, conta com uma abertura internacional, assim como figuram-se nela os grandes nortes de uma economia capitalista: os lucros e os prejuízos.
Todavia, o Partido Comunista é a mão forte que orienta a direção na qual essa economia deve ir. Apesar das camadas mais inferiores da economia chinesa trabalharem voltadas para o capitalismo, ainda assim o Estado chinês controla quase todos os aspectos macro desta economia.
O governo chinês é quem decide o preço do yuan frente ao dólar, quem é autorizado a adquiri-lo, controla quase todas as grandes empresas do país que lidam com a exploração de recursos naturais e controla o sistema bancário quase que completamente, podendo decidir quem tem direito ou não a fazer empréstimos. Ainda, o setor público chinês também obriga as empresas privadas a passarem por inspeções e a terem comitês partidários com poder de influência na tomada de decisões.
Desta forma, é perceptível o alto grau de intervenção estatal no capitalismo chinês. Seu modelo nacional de produção vai muito além de uma estrutura de preços de mercado com um setor público regulador, tendo, na verdade, um estado que controla quase todos os aspectos fundamentais da economia. Portanto, o capitalismo desse país pode ser melhor nomeado, segundo alguns analistas, de “Capitalismo de Estado” ou “Capitalismo Estatal”.
Contudo, é sabido que o estado não é onisciente das preferências de consumo das pessoas. Assim, erros de cálculo na alocação dos recursos, tanto privados quanto públicos, por ocasião de incentivos ou determinações governamentais, podem vir a causar, no longo prazo, a criação de distorções no mercado que poderão se tornar bolhas especulativas e virem a estourar.
Um caso emblemático na China é o setor de construção civil, no qual o governo pode decidir até por construções de cidades inteiras. Pode-se dizer que na China há uma urbanização excessivamente controlada pelo setor público. a maior parte do crédito existente no sistema bancário, também controlado pelo governo, vai para o setor de construção civil.
Esse poder planejador que o governo chinês tem sobre o setor imobiliário acabou causando uma das maiores esquisitices da história da construção civil mundial: o surgimento de cidades fantasmas. Estas são cidades que são subocupadas ou, até em casos mais extremos, não ocupadas. Isto é, são inteiramente construídas, com prédios, ruas, escolas, hospitais, rodovias, praças, mas não há ninguém morando nelas.
Essas construções de cidades inteiras ajudaram a inflar o crescimento do PIB da China por alguns anos. Entretanto, no longo prazo, o dirigismo estatal exacerbado sobre a economia cobra seus custos. O intervencionismo público no setor de construção criou um problema imobiliário imenso, além de um intenso delírio especulativo na China.
De fato, alocar todos os recursos planejando completamente a vida das pessoas tende a não dar certo no longo prazo. As cidades fantasmas foram construídas sob a justificativa que no futuro seriam ocupadas, com a saída da população das zonas rurais, assim como pela diminuição da pressão populacional nos grandes centros urbanos.
Portanto, tais esforços gigantescos no setor imobiliário por parte do governo são meramente especulativos, não frutos de demanda direta propriamente dita. Segundo pesquisas, no ápice do período de construção civil chinesa, o país utilizou em três anos mais concreto do que os EUA utilizaram ao longo de todo o século 20.
Assim, nos últimos anos tivemos uma situação em que a China possuía cerca de 50 milhões de moradias vazias, com risco de um iminente colapso no setor. Um estudo sugere que um em cada cinco imóveis na China está desocupado em decorrência da especulação desenfreada e dos altos preços.
Segundo o FMI, sete das dez cidades mais caras do mundo para comprar imóveis residenciais, fazendo o cálculo do preço das propriedades em relação à renda média, são da China. Tem-se, neste momento, um excesso de oferta de imóveis – ninguém quer comprá-los, o que resulta no estouro da bolha imobiliária chinesa. Aliada a isso, ainda houve a desaceleração da economia mundial, inclusive da chinesa, devido à recente crise do coronavírus, o que tendeu a reduzir o poder de compra médio da população.
Um dos desdobramentos desse crise imobiliária é o caso da Evergrande: grande corporação da construção civil com uma dívida de US$ 300 bilhões, valor que representa 2% do PIB chinês, o equivalente a cerca de R$ 1,6 trilhão considerando um câmbio de R$ 5,30 – quase o valor de um ano completo de arrecadação do governo federal brasileiro.
Evergrande: grande demais para quebrar
A Evergrande foi uma corporação que cresceu bastante e, como todo gigante, ela é “muito grande para quebrar”. O crash de uma empresa dessa envergadura poderia causar consequências economicamente catastróficas não só para a economia chinesa, mas para a economia mundial.
Todavia, o significativo montante de débito da empresa é consequência da absurda especulação imobiliária que esteve ocorrendo na China, fundada na demanda artificial criada pelo governo chinês e seu excessivo dirigismo no setor. A empresa hoje possui uma dívida impagável, pois não há demanda o suficiente pelos imóveis construídos.
O dirigismo estatal exacerbado em um setor causa terríveis bolhas especulativas, que em algum momento vão estourar. A da China estourou. Contudo, sabemos que as uma empresa desse tamanho não pode quebrar, assim, muito provavelmente, o governo chinês salvará a empresa.
Os contribuintes chineses terão que arcar com o prejuízo, transferindo um montante bilionário de dólares para os cofres de uma empresa que realizou investimentos que não deveria realizar por conta de uma demanda artificial criada pelo próprio estado. Assim, podemos dizer que o setor público criou um problema que agora ele mesmo terá que resolver, pois não há outro jeito viável de manter a estabilidade econômica de curto prazo.
Todavia, ninguém passará incólume dessa história: além do estouro da bolha imobiliária chinesa e provável futura extração de impostos do povo chinês para salvá-la, também consequências dessa crise respingarão por todo o mundo, principalmente nos países que exportam muito para a China, como o Brasil.
O setor exportador do Brasil, focado na agropecuária e na indústria extrativa, é muito dependente do mercado chinês. Uma redução na renda chinesa, assim como um desaquecimento do mercado de construção civil no país, tenderá a reduzir as exportações de minérios utilizados no ramo imobiliário, assim como produtos alimentícios consumidos de forma induzida pelo encadeamento dos setores. Dessa forma, teremos uma redução do consumo dos setores exportadores nacionais, assim como uma diminuição na entrada de dólares, podendo até elevar o preço da moeda.
Todavia, não seremos os únicos “premiados” na crise da Evergrande. Não só o Brasil, mas todo o mundo amargará as dores do dirigismo governamental chinês, que, hora ou outra, teria que encarar suas consequências.
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