Foto ou Filme? Macro ou Fundamentos? Destrinchando a dicotomia atual da bolsa brasileira
A bolsa brasileira descolou do restante do mundo, atingindo uma desvalorização de 20% em dólar este ano, ao passo que a média das bolsas globais e, inclusive, de alguns mercados emergentes, apresentam retornos significativamente positivos em 2024.
O pessimismo com os ativos domésticos se espalha em diversos âmbitos, com as taxas das NTN-Bs atingindo níveis de IPCA+6,40%, o dólar flertando com os R$ 5,45 e com a bolsa brasileira negociando a múltiplos mais descontados do que durante a crise do governo Dilma 2 e da crise da Covid-19. O múltiplo “P/L” (Preço/Lucro) atual do IBOVESPA só se compara com o visto no auge da crise do subprime em 2008/2009 na história da bolsa desde então (P/L próximo a 7x).
Muito diferente do que ocorreu na crise do subprime e durante os seis circuit breakers que vivenciamos durante a pandemia, hoje podemos dizer que o cenário global está favorável para a tomada de risco. Após um período de inflação elevada ao redor do mundo, decorrente dos choques de oferta e demais consequências inflacionárias pós-pandemia, o planeta passou por um longo período de aperto monetário, de forma relativamente homogênea, que perdurou até 2023.
Já nos últimos meses de 2023, os mercados globais se animaram com as expectativas que tal período de combate à inflação pudesse estar terminando e precificaram um ano de 2024 repleto de cortes de juros nas economias desenvolvidas, especialmente nos Estados Unidos, onde eram esperados 6 cortes de juros ao longo de 2024. A bolsa brasileira, inclusive, surfou a primeira parte deste movimento de euforia global no final do segundo semestre de 2023, com valorização expressiva de 20% entre a mínima de outubro e o fechamento do ano. Entretanto, a partir da virada do ano, o cenário começou a mudar um pouco e, aqui, começa nossa discussão sobre os rumos das bolsas globais em 2024.
Nos Estados Unidos, os dados de inflação, emprego e atividade divulgados ao longo do primeiro semestre mostraram um cenário diferente do que havia sido precificado pelos mercados no final de 2023. A expectativa de seis ou sete cortes ao longo de 2024 foi completamente revista, e hoje se discute se haverá apenas um, ou no máximo dois cortes no final do ano. Naturalmente, com tal reprecificação da curva de juros americana, que trouxe as taxas das treasuries de 10 anos (equivalente ao Tesouro Direto brasileiro) para patamares superiores a 4,50% em dólar, seria esperado que as bolsas globais pudessem sofrer com o cenário de maiores custos de capital das empresas e com a “taxa livre de risco global” pressionando a atratividade dos ativos de risco.
Porém, o que vimos foi o contrário. Apoiadas numa temporada incrível de resultados do primeiro trimestre de 2024, com algo em torno de 80% das empresas surpreendendo as expectativas de lucro para cima, o S&P 500 e a Nasdaq puxaram a euforia global, que se estendeu para outros mercados.
Para coroar a temporada de resultados, a Nvidia, que recentemente se tornou a maior empresa do mundo com valor de mercado superior a US$ 3,3 trilhões, impressionou até o mais otimista dos analistas, ao reportar crescimento de lucro de 460% A/A e com crescimento de receita superior a 250% A/A, além de expansão de suas margens. Como se não fosse suficiente, a empresa ainda revelou um guidance ousado para o próximo trimestre, além de anunciar dividendos maiores. Como resultado, as ações disparam mais de 170% este ano e são diretamente responsáveis por aproximadamente um terço dos 15% do S&P 500 em 2024.
Quando olhamos para o S&P “equal-weighted”, isto é, com todas as 500 empresas apresentando o mesmo peso, tal valorização anual cai para aproximadamente 4%. Ou seja, se tirarmos Nvidia e as empresas que vêm surfando a onda da empresa (como as geradoras de energia e até parte da valorização das outras gigantes de tecnologia que também estão em forte alta com toda a animação em torno da Inteligência Artificial), não é difícil de se assumir que o ano para a média das empresas americanas não está sendo tão espetacular assim quanto parece quando olhamos apenas para a performance dos índices.
Esse maior apetite ao risco nos Estados Unidos, por mais que concentrado nas teses de tecnologia e inteligência artificial, se espalhou para o continente europeu, que viu suas bolsas rompendo máximas históricas. Porém, no velho continente, a euforia se deu mais por uma antecipação do afrouxamento monetário, do que pelo micro das empresas. É bem verdade que as bolsas europeias também sofreram este mês com as eleições parlamentares e a posterior dissolução do Parlamento francês, mas ainda acumulam alta de 7% em dólar no ano.
Do outro lado do mundo e com uma dinâmica descorrelacionada dos demais mercados citados, as bolsas chinesas também se recuperaram bem após anos de desinteresse por parte dos investidores globais no gigante asiático. O Partido Comunista Chinês anunciou medidas significativas para impulsionar a economia e estabilizar o mercado de trabalho devido aos desafios enfrentados pelo setor imobiliário e o mercado acionário apresenta valorização de 10% em dólar no ano.
Entretanto, o que estamos acompanhando até o momento não é um crescimento impulsionado pelo setor imobiliário e pelo consumo de commodities, mas sim impulsionado pela reação nos setores varejistas e de serviços.
E como que o mercado acionário brasileiro está indo tão mal, mesmo com ventos positivos vindos de fora? Temos que separar essa resposta em duas narrativas.
A primeira, é relacionada aos tais “ventos de fora”. Como tentei resumir de maneira simples, a bolsa americana foi puxada pela Inteligência Artificial, a Europa pela antecipação do início dos cortes de juros e a China pelo mercado interno, e não pela demanda crescente por commodities, como petróleo e minério de ferro, que seguem em baixa. A dura verdade é que pouco, ou quase nada, desses fatores positivos impactam realmente as empresas brasileiras.
Obviamente, o mercado brasileiro não possui presença de empresas que atuam no segmento de I.A, tampouco nos beneficiamos dos maiores gastos com varejo e serviços das famílias chinesas e, sobre juros, esse sim dá o gancho necessário para tratarmos do cenário doméstico.
A segunda narrativa, como o leitor já deve ter percebido, é relacionada às questões domésticas. Quando olhamos para o primeiro boletim Focus publicado este ano e o comparamos com a última divulgação, percebemos que o mercado estimava uma Selic a 9% ao final de 2024 e de 8,5% em 2025. Agora, o mercado espera uma Selic de 10,5% para este ano (o que representa que não haverá mais nenhum corte de juro) e de 9,5% em 2025. Olhando para as projeções de IPCA e dólar, o comportamento é similar e vem se agravando sucessivamente. Ou seja, além do cenário de cortes de juros nos Estados Unidos ter sido postergado sucessivamente ao longo do ano, a desancoragem das expectativas de inflação e o câmbio desvalorizado (atualmente na casa dos R$ 5,40) são explicações domésticas para que o mercado passasse a enxergar dificuldades de o COPOM conseguir cortar juros para um dígito.
Talvez o leitor que acompanhe um pouco menos o noticiário esteja se perguntando a essa altura se, então, o Brasil passa por uma grande crise, com desemprego em alta, PIB fraco, inflação fora de controle, etc. A grande verdade é que não.
No momento, a grande piora nos mercados não vem da “foto” atual do Brasil, mas sim, de uma apreensão com relação às próximas cenas do “filme” do país. A inflação corrente está significativamente comportada, com IPCA acumulado em 12 meses recuando para baixo de 4% e com a média dos núcleos caminhando para 3% (praticamente na meta). O crescimento segue resiliente, com projeções de crescimento do PIB em 2024 ao redor de 2%. A balança comercial e as contas externas seguem bastante positivas, ainda que os últimos dados indiquem alguma desaceleração. Por fim, a taxa de desemprego está no nível mais baixo para um primeiro trimestre nos últimos 10 anos.
Olhando para o micro das empresas, também não encontramos justificativas plausíveis para os níveis atuais de preços. Na última temporada de resultados, vimos um crescimento relevante nas receitas e de dois dígitos no resultado operacional (Ebitda) das empresas, marcando o primeiro trimestre de crescimento no indicador desde o quarto trimestre de 2022. Até o nível médio de alavancagem das empresas da bolsa (próximo a 2x Ebitda) está significativamente abaixo da média histórica, enquanto o dividend yield da bolsa hoje está na região de 7%, praticamente o dobro da média histórica e mostrando que a saúde financeira das companhias está em dia.
Olhando para frente, o mercado projeta uma continuidade na recuperação dos lucros, com o consenso indicando um crescimento relevante do lucro por ação do IBOVESPA tanto em 2024 quanto em 2025, principalmente para os ativos cíclicos domésticos. Mesmo assim, como comentamos no início desta coluna, o valuation atual do IBOVESPA é mais descontado do que foi durante o pior momento da pandemia, do que o pior momento da crise do governo Dilma 2 e é comparável com o patamar atingido no auge do pânico generalizado durante a crise do subprime em 2007/2008.
Afinal, se a “foto” atual é animadora para o macro e para o micro, e se o “filme” para o micro também parece bom, o que sobra e que está contribuindo para a tragédia na performance do IBOVESPA no ano é apenas o “filme” da parte macro. Ao longo do semestre, os investidores vêm “jogando a toalha” com relação ao futuro do Brasil. Os questionamentos são diversos, e incluem as incertezas com relação à sucessão da presidência do Banco Central e quão lenientes com a inflação serão os membros votantes do COPOM, os riscos fiscais e as seguidas interferências políticas (diretas e indiretas) nas empresas.
Além disso, com desemprego baixo, massa salarial recorde, câmbio desvalorizado e consumo das famílias pujante, não é difícil imaginar um cenário mais apertado para inflação adiante, mesmo com juros em patamares bastante restritivos. Caso isso ocorra, teremos uma revisão da meta de inflação? A percepção do mercado é de um ambiente de incertezas para tais variáveis.
Do lado fiscal, o ambiente já vem se deteriorando, com recordes de arrecadação coincidindo com endividamento crescente e sem visibilidade para cortes de gastos que façam com que essa conta feche num futuro próximo. Hoje, o mercado vem precificando que o Orçamento atual não será cumprido, com subestimação de despesas e superestimação de receitas. A consequência natural disso tudo é que o atingimento da meta fiscal se torna cada vez mais distante.
Ou seja, não devemos enxergar uma estabilização da relação Dívida/PIB tão cedo.
Do lado da arrecadação, o Congresso vem mostrando que dificilmente projetos de taxação do setor produtivo serão aprovados. Nos últimos dias, algumas alas do governo começam a mostrar que existe o conhecimento de que o problema dos excessivos gastos públicos tem que ser endereçado, o que seria extremamente bem-visto pelo mercado, apesar de ainda parecer pouco provável que medidas materiais sejam tomadas no curto prazo neste sentido.
De fato, a vida do investidor de ações no Brasil não vem sendo fácil já desde a pandemia. O leitor provavelmente já cansou de ouvir especialistas dizendo que “a Bolsa está barata” e, mesmo assim, as ações continuam caindo e parecem não ter fundo, mesmo com o mercado global em alta.
Se existe algum trigger que possa destravar os preços, eu destacaria os seguintes: i) possível alívio nas questões envolvendo o problema fiscal, como possíveis cortes de gastos pelo governo; ii) recuperação das commodities, possivelmente acompanhada de uma retomada dos estímulos na China e; iii) cenário de cortes de juros, especialmente nos EUA, se concretizando e possibilitando que o COPOM possa voltar a cogitar cortes na SELIC sem desancorar expectativas futuras de inflação.
Por fim, mais importante do que os possíveis triggers para uma eventual recuperação do mercado, acredito que seja encerrarmos essa coluna ressaltando a necessidade do investidor de longo prazo brasileiro ser resiliente ao passar por estes longos e duros ciclos de queda nas ações. Infelizmente, problemas fiscais e ruídos políticos sempre fizeram parte da vida do investidor brasileiro.
O que a história nos mostra, é que momentos de stress doméstico acompanhado de múltiplos baixos das ações, com inflexão nos resultados operacionais das companhias e commodities em baixa, não são bons momentos para o investidor decidir ficar de fora do mercado brasileiro. Não podemos nos esquecer que o momento de maior desânimo e pessimismo do mercado coincide com o melhor momento de compra.
Isso foi bastante claro em 2016, quando os investidores que tiveram a frieza de comprar ações brasileiras em meio a um processo de impeachment de presidente, com dólar explodindo e escândalos de corrupção nos noticiários, ganharam muito dinheiro quando houve a melhora do cenário doméstico aliada a uma alta das commodities.
Para colher os frutos do longo prazo, o investidor de ações precisa conseguir aproveitar (ou, ao menos, suportar) esses momentos, entendendo que, hora ou outra, os preços dos ativos tendem a convergir para a direção de seus fundamentos.
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