Distressed M&A
Inauguramos essa coluna com um voo panorâmico sobre M&A para – a partir daí – abordar os principais temas em detalhes. O plano de voo original previa a abordagem do Distressed M&A um pouco mais à frente.
Em função dos recentes desafios que se descortinaram para empresas em situação de estresse financeiro, como a Americanas, Oi, CVC, Light, etc, entendemos que antecipar a abordagem desse tema é interessante para melhor contextualizá-lo. Pode-se abrir um universo de oportunidades para distressed M&A.
O que é Distressed M&A?
Distressed M&A é a aquisição de ativos ou participações de empresas sob estresse financeiro (do inglês “financial distress” e portanto distressed M&A). O estresse financeiro pode ser configurado por uma simples dificuldade financeira da empresa (um descasamento temporário entre receita e despesa), por uma situação de insolvência, quando as dívidas excedem o valor dos bens do devedor, ou por já estar submetida a processo de recuperação ou falência.
Esses ativos podem ser (i) créditos de pessoas físicas, jurídicas e órgãos públicos; (ii) participações societárias em outras sociedades; (iii) alguma unidade de produção da empresa sob stress; (iv) algum ativo específico, como imóvel, marca, etc; ou (v) a própria empresa.
Uma operação recente e que merece destaque envolveu a aquisição de ativos da Estre Ambiental (em recuperação judicial). A Orizon (empresa de gestão de lixo) e a Jive (gestora de distressed assets) pagaram 840 milhões por aterros sanitários da Estre Ambiental, sendo que a Jive já havia adquirido com deságio debêntures das instituições financeiras credoras da Estre. Como parte da estratégia para levantar esses recursos, a Orizon emitiu novas ações e as precificou com base na média dos últimos pregões e um prêmio de 16% em relação ao preço de tela.
Como surgiu?
A aquisição de ativos em estresse consolidou-se na década de 1980 nos Estados Unidos, com a crise das associações de mutuários para financiamento da casa própria “Savings & Loans”. O Governo Americano, por intermédio da Federal Savings and Loan Insurance Corporation (FSLIC) precisou intervir em centenas de instituições financeiras e, posteriormente criou a Resolution Trust Corporation (RTC) que assumiu esse encargo e passou a vender e gerir os ativos sob estresse para investidores privados.
Criou-se assim um novo nicho de mercado representado por ativos sob estresse com preços atrativos e expectativa de alta rentabilidade para investidores com apetite a risco. Com o tempo, bancos de investimentos tradicionais, fundos de investimentos especializados e empresas de um modo geral passaram a visualizar neste segmento uma oportunidade de negócio.
O Brasil e os números
Aqui no Brasil esse mercado começa a ganhar corpo a partir de 2000 com as apostas dos investidores internacionais (motivados pela desvalorização do real) e desde então conquistando importantes avanços para a negociação de ativos de empresas submetidas a processos de insolvência.
Antigamente, o comprador de um ativo estava exposto à responsabilidade sucessória dos passivos do vendedor. Com a Lei 11.101/2005 (Lei de Recuperação e Falência), a aquisição de unidades de negócio independentes passou a proteger o comprador da exposição à responsabilidade sucessória dos passivos do vendedor.
Agora, com a Lei 14.112/2020 (apelidada de reforma da Lei de Recuperação e Falência), a proteção ao comprador em relação à responsabilidade sucessória dos passivos do vendedor passou a ser oferecida nos casos de aquisição de qualquer ativo não circulante, e não apenas nos casos de aquisição de unidades de negócio independentes.
Nos últimos 05 anos (de 2018 a 2022), 5.698 empresas ajuizaram pedido de recuperação judicial. Esses números representam uma média aproximada de 1.140 procedimentos por ano e algo em torno de 95 empresas por mês, segundo dados do Serasa Experian.
Quais os atrativos?
Esse é um mercado que assume relevante função econômica na medida. A injeção de recursos novos no caixa das empresas em dificuldade ajuda na reestruturação financeira da empresa (e quiçá em sua recuperação), com a manutenção de todo o ciclo econômico com empregados, fornecedores, impostos e consumidores (concorrência de preços).
Para as empresas em dificuldade, as vantagens são expressivas: levantar recursos; retirar do portfólio operações pouco lucrativas e/ou que consomem caixa; concentrar esforços no core business e/ou atividades com melhores resultados. Para os investidores, é na equação “high risk high reward” que está o jogo.
Quais as principais diferenças e riscos de um Distressed M&A.
As principais diferenças entre um non-distressed M&A e um distressed M&A são: a dinâmica da negociação, pois deixa de ser bilateral entre vendedor e comprador e passa a envolver outras partes interessadas a exemplo de credores; o timing, pois enquanto o vendedor quer urgência na venda, o comprador quer tempo para avaliar o ativo; as aprovações pois além de eventual necessidade de aprovação por parte de órgãos reguladores como CADE, será necessário contar com a aprovação do juiz e/ou credores.
Os principais riscos de um distressed M&A são: a operação ser declarada nula ou ineficaz e o comprador absorver por sucessão as obrigações e responsabilidades do vendedor. Esse último risco de sucessão nas obrigações e responsabilidades do vendedor é típica de toda e qualquer aquisição de ativos e/ou participação societária, mas merece especial atenção em um distressed M&A.
A operação pode ser declarada nula nas seguintes situações: (a) fraude a credor, o que pode ser configurada quando um devedor já insolvente – ou que passa a ser insolvente em decorrência da operação – promove conscientemente a redução de seu patrimônio sabendo prejudicar credor pré-existente; (b) fraude à execução, o que pode ser configurada quando o devedor aliena ou onera bens enquanto tramita contra o mesmo uma ação judicial capaz de reduzi-lo à insolvência; (c) fraude contra a Fazenda Pública, o que pode ser configurada quando o devedor aliena ou onera bens estando em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa; ou (d) ineficácia de transações feitas em desacordo com as regras previstas na Lei de Recuperação e Falência (Lei nº 11.101/2005).
O comprador pode absorver por sucessão as obrigações e responsabilidades do vendedor nas seguintes situações: (a) sucessão civil, pois o adquirente de estabelecimento responde pelo pagamento dos débitos anteriores à transferência, desde que regularmente contabilizados (Artigo 1.146 do Código Civil); (b) sucessão trabalhista, pois a alteração na estrutura jurídica da empresa não afetará os direitos adquiridos por seus empregados (Art. 10, 448 e 448-A da Consolidação das Leis Trabalhistas); (c) sucessão fiscal, pois o adquirente de fundo de comércio ou estabelecimento que continuar a respectiva exploração responde pelos tributos decorrentes da atividade (Art. 133 do Código Tributário Nacional); (d) sucessão ambiental, pois a legislação ambiental pune a atividade e impõe uma obrigação de reparação que acompanha a propriedade em caso de transferência (Art. 14 da Lei 6.938/81 e Art. 2, §2° da Lei 12.651/12); e (e) sucessão por atos de corrupção, pois as pessoas jurídicas são responsabilizadas objetivamente, nos âmbitos administrativo e civil, pelos atos lesivos contra a contra a administração pública praticados em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não (Art. 2° da Lei 12.846/2013).
Como é feita a alienação dos ativos?
Se a empresa não ajuizou processo de recuperação, a alienação de ativos é livre. Contudo, se a empresa já ajuizou pedido de recuperação judicial, a alienação de ativos não circulantes somente poderá ocorrer se previsto no plano de recuperação judicial, aprovado por credores e homologado pelo juiz ou mediante autorização do juiz, depois de ouvido o Comitê de Credores. Encontre abaixo as particularidades de um Distressed M&A em diferentes cortes temporais.
- Distressed M&A sem processo
Antes do ajuizamento de qualquer processo de recuperação da empresa, a alienação de ativos é livre e não depende de autorização de credores e/ou da justiça. A desvantagem é porque a operação é despida das proteções legais que a Lei de Recuperação e Falência proporciona. Essas proteções legais podem evitar que a operação seja declarada nula ou ineficaz e evitar que o comprador absorva por sucessão as obrigações e responsabilidades do vendedor.
A reflexão que o comprador costuma fazer aqui é a seguinte: (a) optar por uma operação célere, mas que exige uma due diligence extremamente criteriosa para avaliar riscos e possíveis mitigações; ou (b) aguardar o ajuizamento do processo de recuperação da empresa para garantir uma maior segurança jurídica à operação e um menor risco ao comprador. Um exemplo recente foi a aquisição pela Votorantim e Itaúsa da totalidade da participação detida pela Andrade Gutierrez na CCR. Logo em seguida, a Andrade Gutierrez protocolou um pedido de recuperação extrajudicial para reestruturar sua dívida internacional.
- Distressed M&A na Recuperação Extrajudicial
No caso de recuperação extrajudicial da empresa, mesmo após o ajuizamento do pedido de homologação do plano de recuperação extrajudicial, a alienação de ativos também é – a rigor – livre, não depende de autorização de credores e/ou da justiça e não depende de constar no plano de recuperação apresentado.
Contudo, se a operação estiver prevista no plano de recuperação homologado, o comprador estará em melhor posição. Recentemente, a Lei de Recuperação Judicial e Falência passou a estabelecer que a alienação de bens, mediante autorização judicial expressa ou prevista em plano de recuperação judicial ou extrajudicial aprovado, não poderá ser anulada ou tornada ineficaz. Com isso, a segurança jurídica da operação é preservada, mas o risco de sucessão persiste. Veja artigos 66-A e 131 da Lei 11.101/2005.
3. Distressed M&A na Recuperação Judicial
No caso de recuperação judicial, após o ajuizamento do pedido de recuperação judicial, a alienação de ativos somente poderá ocorrer se previsto no plano de recuperação judicial, aprovado por credores e homologado pelo juiz ou mediante autorização do juiz, depois de ouvido o Comitê de Credores. Veja artigo 66 da Lei 11.101/2005. Aqui também se aplica a recente atualização da lei que passou a estabelecer que a alienação de bens, mediante autorização judicial expressa ou prevista em plano de recuperação judicial ou extrajudicial aprovado, não poderá ser anulada ou tornada ineficaz. Veja artigos 66-A e 131 da Lei 11.101/2005. A diferença para a recuperação extrajudicial é porque na recuperação judicial, além da segurança jurídica da operação poder ser preservada, também é possível resguardar o comprador do risco de sucessão.
A lei prevê que se alienação for realizada por meio de processo de concorrência previsto na mesma lei, o objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do adquirente nas obrigações do devedor, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista. Veja artigo 66 §3º, 141 e 142 da Lei 11.101/2005. Essa proteção só não se aplica se o comprador for sócio da recuperanda, parente de sócio da recuperanda, sociedade controlada pela recuperanda ou agente da recuperanda com objetivo de fraudar execução. Veja artigo 141 da Lei 11.101/2005. Um exemplo foi a venda pelo Grupo Odebrecht de sua controlada Odebrecht Ambiental para a canadense Brookfield.
- UPI – Unidade Produtiva Isolada
Uma outra opção muito comum é estruturar a operação como uma aquisição de unidade produtiva isolada (“UPI”), o que pode acontecer tanto na recuperação extrajudicial como na recuperação judicial. Nesta modalidade, o ativo da empresa recuperanda é usualmente alocado em uma outra sociedade (nova ou já constituída), de titularidade da recuperanda (movimento conhecido como “drop down”) e faz-se a alienação desta sociedade como uma unidade produtiva isolada. Contudo, existe uma diferença marcante em se promover a aquisição de uma UPI na recuperação extrajudicial e na recuperação judicial.
Na recuperação extrajudicial, a aquisição de UPI goza de proteção contra a declaração de nulidade ou ineficácia, se promovida de acordo com a lei, mas a proteção contra sucessão não é uma garantia expressa. A redação original do capítulo que trata dessa modalidade não regula a questão da sucessão e não foi contemplado pela reforma da lei. Veja artigos 166 e 131 da Lei 11.101/2005. Já na recuperação judicial, a aquisição de UPI goza de proteção contra a declaração de nulidade ou ineficácia, se promovida de acordo com a lei e a lei determina expressamente que o objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor de qualquer natureza, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista. Veja artigos 60, 131 e 141 da Lei 11.101/2005.
Um exemplo foi a aquisição pela Telefônica Brasil S.A. da Garliava (controlada pela OI), por meio do qual a Telefônica adquiriu a totalidade das ações de emissão da sociedade Garliava RJ Infraestrutura e Redes de Telecomunicações S.A. para a qual foi contribuída a Unidade Produtiva Isolada – UPI.
Conclusão
Entendemos que o melhor timing para uma operação de Distressed M&A é durante uma recuperação judicial. Com a reforma da Lei 11.101/2005, promovida pela Lei 14.112/2020, é possível afastar os principais riscos, quais sejam: a operação ser declarada nula ou ineficaz e o comprador absorver por sucessão as obrigações e responsabilidades do vendedor. E isso tudo independe da operação ser estruturada como UPI, constar em plano de recuperação aprovado ou ser implementada via autorização judicial.
Este texto foi escrito em colaboração com Ricardo Thomazinho