A explosão que destruiu boa parte de Beirute, a capital do Líbano, na última terça-feira (4), com a morte de centenas de pessoas, provocaram uma série de manifestações que levaram a demissão do governo liderado por Hassan Diab.
Entretanto, a devastação provocada pela deflagração do depósito no porto da capital foi apenas o estopim para os protestos. A pólvora tinha sido preparada por uma situação muito crítica da economia do Líbano, com inflação insustentável, queda do Produto Interno Bruto (PIB), confisca das contas correntes e derrubada no câmbio da lira com o dólar. E o responsável por esse desastre econômico foi o Banco Central.
O Líbano é um país muito peculiar. Já foi chamado de “Suíça do Oriente Médio” e sempre se caracterizou por um padrão de vida de seus habitantes muito mais elevado do que de outros povos da região, semelhante ao dos cidadãos dos países ocidentais. A desastrosa guerra civil, que terminou em 1990, não alterou estas características.
Esse bem estar também foi mantido graças a uma estratégia iniciada em 1997, quando a libra libanesa foi atrelada ao dólar ao câmbio de 1.507,50. O câmbio fixo permitiu que a população desfrutasse de uma moeda estável, mantivesse seu poder de compra ao longo do tempo e, portanto, conseguisse sustentar um estilo de vida elevado.
Mas havia um grande problema: o Líbano não exporta praticamente nada, e importa quase tudo. E esse estilo de vida dos libaneses era muito superior as reais capacidades produtivas do país.
Por isso, nos últimos anos o déficit comercial ficou em volta de um terço do PIB. Algo insustentável para qualquer país do mundo. Isso pois para financiar todas essas compras no exterior são necessários dólares. E vender dólares para comprar mercadorias acabaria desvalorizando a moeda local, deixando o cambio fixo insustentável.
Como, então, foi possível ao Banco Central libanês manter esse sistema de câmbio por mais de duas décadas?
Banco Central do Líbano se transforma em pirâmide financeira
Ao atrair capital do exterior, especialmente da diáspora libanesa no mundo árabe e da vizinha Síria (muitos sírios ricos estavam procurando um “porto seguro” para proteger seus capitais da guerra civil), o BC local oferecia aos bancos nacionais altas taxas de juros sobre os depósitos em dólares (permitidos no Líbano, diferente que no Brasil). Retornos interessantes que os bancos libaneses repassavam aos clientes. Dessa forma, poupadores estrangeiros conseguiam obter taxas de juros de até 20% ao ano sobre seus depósitos em moeda norte-americana.
Esse sistema era uma farsa organizada pelo Banco Central, um gigantesco “esquema Ponzi”, ou, mais simplesmente uma pirâmide financeira. Isso pois os altos juros eram pagos não pelo retorno do capital investido, mas pela atração de novos capitais. Exatamente como acontece no caso das pirâmides financeiras que utilizam o esquema de marketing multinível: eu te pago se me trouxer um cliente. E assim por diante para sempre, surfando na onda com a chegada de clientes sempre novos.
Mas quando o fluxo de clientes acaba ou se reduz, a pirâmide desmorona e o golpe é revelado. E foi esse o caso do Banco Central do Líbano.
Já em 2002 a situação começou a apertar, e o então premiê, Rafiq Hariri organizou uma “conferência internacional de doadores” em Paris, onde a Arábia Saudita liderou um grupo de países que forneceram ajuda financeira ao Líbano, evitando o colapso.
Mas após décadas operando dessa forma (muitas vezes fechando os olhos para operações ilegais que ocorriam no país, como lavagem de dinheiro ou financiamento de grupos terroristas), o fluxo de dólares do exterior para o Líbano começou a minguar no ano passado.
O capital do exterior parou de fluir e o Banco Central ficou sem mais dólares suficientes para pagar os juros dos depósitos. Nesse momento, os bancos privados tiveram que atuar de forma muito parecida a um “confisco do Collor“: de um dia para outro, e sem avisar previamente os clientes, bloquearam as contas correntes, limitando saques e pagamentos com cartão, e converteram arbitrariamente as contas em dólares para valores em liras libanesas. Tudo, para conter as saídas e evitar de quebrar por falta de dinheiro para devolver aos clientes, que obviamente inciaram corridas aos bancos.
Todavia, com essa operação, a paridade com o dólar acabou imediatamente, e o valor da moeda norte-americana foi para cerca de 8 mil liras. E mesmo se o câmbio oficial continua sendo garantido pelo estado já existem várias taxas de câmbio paralelas. Algo muito parecido ao que ocorreu na Argentina nos últimos anos.
Dessa forma, de repente os libaneses se descobriram pobres. Suas contas congeladas, o valor de seus salários derretendo de cerca de US$ 900 para US$ 180, o desemprego em 40% entre os jovens e uma hiperinflação que deixou até os bens primários caros demais. Além de uma dívida pública de mais de 170% do PIB, alimentada por gastos públicos desenfreados que favoreceram a corrupção e o assistencialismo barato.
Sem dólares começou a ficar complicado até importar comida. E a população sentiu isso imediatamente. Além dos cortes cotidianos de água, luz e outros serviços essenciais. E em março desse ano, o país decretou calote em sua dívida. A situação do Líbano começou a parecer cada vez mais à da Venezuela.
Saiba mais: Líbano anuncia calote da dívida de US$ 1,2 bilhão
Foi nesse momento que a frustração se tornou desespero, e a população foi para as ruas, levando a que da do governo do então primeiro ministro Saad Hariri, que teve que renunciar no final do ano passado, após virulentos protestos e acusações de corrupção. Mas o governo que o substituiu não se demonstrou capaz de enfrentar o problema.
Agora, com a explosão que devastou quase a metade da capital do país, foi a última gota para uma população exasperada, que pede mudanças radicais. Mas o problema é muito mais complexo para ser enfrentado apenas com ajuda internacional.
A reconstrução da economia do Líbano não será rápida nem indolor. Reformas impopulares serão necessárias e a inflação, que já havia chegado para 90% em junho, poderá aumentar ainda mais, dizimando o poder de compra dos cerca de 10 milhões de habitantes.
A economia local já não era competitiva, e com a crise provocada pelo coronavírus (covid-19) e a queda ainda maior do turismo após a explosão na capital, certamente será ainda mais difícil retomar o crescimento. E, no fundo, permanece o medo de um retorno aos anos violentos da guerra civil, que ensanguentou o Líbano por 25 anos.
Notícias Relacionadas