A relação entre o Banco Central e o atual governo é complexa e cheia de embates desde a campanha presidencial de 2022, quando o atual presidente Lula já criticava a recém conquistada autonomia do BC. Em 2024, a discussão se aprofunda ainda mais com o avanço da discussão da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 65/2023, que busca cortar ainda mais os laços entre a autoridade monetária e o Executivo.
A PEC foi apresentada por Vanderlan Cardoso (PSD-GO) no fim do ano passado, pouco antes do início do recesso legislativo. A expectativa é de que o relator Plínio Valério (PSDB-AM) apresente o relatório final ainda no primeiro semestre na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. Se aprovado, o texto ainda precisará passar por duas votações na Câmara dos Deputados.
Na prática, a PEC é uma tentativa de ampliar a autonomia concedida ao BC em 2021. O governo de Jair Bolsonaro instituiu mandatos fixos para os presidentes e diretores, ampliando a separação política entre o Executivo e a autoridade monetária. O que está em jogo agora é a autonomia financeira do Banco Central.
Hoje, o BC funciona como uma autarquia federal, com o seu orçamento vinculado à União e às amarras burocráticas que a envolvem. Caso a PEC seja aprovada, o funcionamento do Banco Central passaria a ser mais parecido com o visto em países como os Estados Unidos, transformando-o em uma empresa pública com total autonomia financeira e orçamentária.
Na prática, a eventual aprovação da medida desvincula o orçamento do BC das decisões orçamentárias da União e do Tesouro. Assim, haveria uma maior liberdade para definir contratações, reajustes e planos de carreira. O caixa seria formado por receitas oriundas da “senhoriagem” — receita obtida pela emissão, administração e circulação de moeda, além de algumas taxas cobradas de instituições financeiras.
Paralisações de servidores do BC não são raras, principalmente nos últimos cinco anos – e embora não atrasem divulgações-chave, como as decisões de política monetária, é comum que diversos outros dados econômicos monitorados pelo BC (como o Boletim Focus semanal) acabem sendo postergados.
No início do ano, por exemplo, servidores pararam por 24 horas sob a alegação de que o governo teria atendido pleitos de órgãos como a Receita e a Polícia Federal, sem incluir o BC.
Bom ou ruim para o Banco Central?
A discussão ainda está no início e, até que o relatório oficial seja apresentado e a medida avance no Legislativo, as especificidades do projeto ainda são desconhecidas. Ainda assim, o mercado financeiro tende a concordar que quanto mais descorrelacionado o Banco Central estiver do Executivo, maior o fortalecimento da instituição.
Para Rafael Passos, sócio-analista da Ajax Asset, a autonomia financeira é o caminho para aumentar ainda mais a institucionalização do banco, fortalecendo o que se iniciou no governo passado e garantindo que os recursos financeiros sejam utilizados de forma mais assertiva.
Além disso, como a instituição é reconhecida por ter funcionários muito técnicos, o movimento reduziria ainda mais as amarras que poderiam gerar uma maior influência política.
Mas ainda é preciso fazer ajustes e mais detalhes sobre alguns pontos do projeto. “Não está muito claro como seria a relação do Tesouro Nacional com o BC e como ficariam os repasses entre as instituições”, explica.
Em relação às decisões de política monetária, Passos não acredita em mudanças. Afinal, a PEC não altera a dinâmica de indicações para o Copom, apenas amplia a independência financeira da instituição.
Mesmo que o projeto seja aprovado, seguirão valendo as regras estabelecidas pela lei complementar nº 179 de 2021. O documento deixou estabelecido que o presidente e diretores do Banco Central serão indicados pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado Federal, e um novo presidente só assume no primeiro dia útil do terceiro ano de cada governo.
Além disso, Passos aponta que mesmo com ataques frequentes vindos do governo federal e do Partido dos Trabalhadores (PT), a atual gestão de Lula já fez três indicações de diretores. E, ao contrário do que o mercado temia, os novos integrantes do Copom se mantiveram mais alinhados à política defendida por Roberto Campos Neto do que aos apelos feitos pelo Executivo.
“O BC vai seguir precisando prestar contas. Ele tem os seus compromissos e a quem responder, só que dessa vez será ao Congresso”, conclui Passos.
Marcus Vinicius Garcia Ribeiro, sócio da ARS Advogados e especialista em direito bancário, aponta que, embora a tentativa de ampliar a autonomia do Banco Central possa levar a uma atuação mais independente por parte da autoridade monetário, há uma parcela de especialistas que se preocupam com a limitação da influência do governo em momentos de instabilidade econômica ou política.
“A clareza nas competências e a autonomia do BC poderiam reduzir interpretações divergentes sobre suas atribuições e proteger a instituição de interferências indevidas, garantindo a continuidade de políticas econômicas consistentes”, explica.
O que pensam os envolvidos?
Roberto Campos Neto, presidente do BC e inúmeras vezes alvo direto do descontentamento do governo federal com relação à condução da política monetária do país, já falou publicamente sobre o tema e pareceu endossar a discussão.
Embora tenha classificado o projeto como um “passo natural”, Campos Neto evitou conflitos com o governo ao dizer que é preciso deixar o debate na mão dos técnicos para entender os benefícios para o Brasil. Na ocasião, afirmou que gostaria de evitar ruídos na mídia e que se trata de um tema “super técnico” cuja discussão deve ocorrer num ambiente adequado.
Enquanto o Executivo se mantém distante das discussões sobre o tema, a Advocacia-Geral da União (AGU) já se pronunciou de forma negativa sobre a proposta, afirmando que a decisão via PEC estaria passando por cima das prerrogativa do Executivo ao propor mudanças que afetariam não só a estrutura do BC, como também nas carreiras e salários dos servidores da instituição.
Além disso, a AGU acredita que o texto da PEC do BC dá poderes excessivos, como a possibilidade de multar instituições – o que, segundo o parecer da AGU, estaria além das obrigações de uma empresa pública.
Apesar de especialistas apontarem que a PEC poderia trazer maior poder financeiro, sem ficar nas mãos de repasses do Tesouro, o Sindicato Nacional dos Funcionário do Banco Central (SINAL), divulgou uma carta pública em que se coloca contra a aprovação da medida nesta segunda-feira (22).
O SINAL aponta que, após análises jurídicas e de “diversos ângulos”, 74% dos 4.524 servidores consultados votaram pela rejeição integral ao projeto. 23% apontaram que é preciso fazer alterações no texto apresentado e apenas 3% do corpo funcional apoiou o texto do Senado.
Na carta, o sindicato explica que a rejeição vem do fato de que haveria alteração no regime funcional de seus servidores. Além disso, aponta que a ruptura com o poder Executivo prejudicaria “a capacidade futura de coordenação da política econômica“.
Indo na contramão das expectativas do mercado financeiro, que apoia decisões técnicas, o SINAL se coloca contra a PEC da autonomia financeira e aponta que “não há como ignorar sua condição fundamental [do Banco Central] de instituição típica de Estado, incompatível com a sua transformação em empresa pública”.