Em meio a um cenário de crédito visto como complexo e em desaceleração por especialistas, um impacto na atividade econômica – e até uma eventual recessão – já são aventadas. O caso Americanas (AMER3), que levou à recuperação judicial da empresa e um impacto dramático na cadeia de consumo, afetando fornecedores, deve contribuir para esse cenário mais pessimista.
Ainda assim, mesmo com a deterioração do crédito e o ‘efeito Americanas’, o cenário-base dos analistas estima uma contração não tão intensa. O pessimismo é puxado especialmente pelo fato de que a Selic deve seguir alta por mais tempo do que o esperado.
Além disso, o consenso já projeta uma taxa básica de juros em dois dígitos em 2024, conforme reportado pelo Suno Notícias.
“Já temos uma projeção de economia praticamente parada este ano, (crescimento de) 0,7% para o PIB, com o agronegócio forte e o primeiro trimestre forte. Depois, economia parada. Se a disposição de conceder crédito diminui, pode impactar. Podemos ter dois trimestres negativos, seria uma recessão técnica“, diz a economista-chefe do banco Credit Suisse, Solange Srour.
A preocupação com o crédito neste ano, aliás, esteve entre os temas debatidos por economistas nas reuniões trimestrais com o Banco Central (BC) nesta semana. “Foi muito discutida a preocupação com Americanas, que um evento mais disruptivo no crédito poderia desencadear uma desaceleração muito forte da atividade”, relatou uma fonte.
2023 de ‘limpeza’
Na temporada de balanços do quarto trimestre, o Banco do Brasil, por exemplo, previu expansão entre 8% e 12% da carteira de empréstimos este ano, abaixo dos 17% do ano passado.
E o presidente do Bradesco, Octavio de Lazari Junior, disse que o banco vai aproveitar 2023 como um ano de “limpeza”, com empréstimos menos arriscados.
O analista de macroeconomia Michael Burt, da LCA, prevê uma desaceleração do crescimento do saldo de crédito livre a empresas a 7,0% em 2023, após alta de 9,9% em 2022.
Ele alerta, no entanto, que o episódio da Americanas gerou incerteza no cenário e pode reduzir ainda mais a expansão no ano.
“Alguns bancos mostraram sinalizações de que isso vai reduzir o apetite para empréstimos, como, por exemplo, o Bradesco. Se isso se concretizar, esse 7,0% pode cair para algo em torno de 6,0% a 5,5%”, diz Burt, que vê nesse cenário adverso um risco para a obtenção de capital de giro para empresas, com impacto sobre a atividade.
Para a LCA, “eventual fracasso nesse esforço (de contornar uma crise de crédito) tenderia a deslocar a economia doméstica para uma trajetória claramente mais frustrante do que ora contemplamos em nosso cenário-base – algo superior a 1% (de crescimento) na média de 2023 e 2024″.
A analista Isabela Tavares, da Tendências, mantém no cenário-base uma queda real de 2,8% das concessões de crédito este ano, após crescimento de 10,4% em 2022, devido à expectativa de manutenção da taxa Selic em 13,75% até o terceiro trimestre.
Essa premissa já está embutida na projeção da consultoria para o PIB de 2023, de avanço de 0,9%, mas Tavares alerta que há riscos de uma piora mais intensa no crédito, com impacto sobre a atividade.
“Temos uma perspectiva de que o custo do crédito para o tomador final tenha um recuo marginal de 0,4 ponto porcentual no fim de 2023 ante o fim de 2022, devido à queda da taxa Selic. Caso a taxa não caia, há risco de esses juros atingirem níveis mais altos e isso dificultar ainda mais a demanda e a oferta por crédito, além de aumentar a inadimplência. Tem o risco de um cenário pior”, explica.
Caso Americanas pode causar ‘soluço’, diz Campos Neto
Para o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, o caso das Americanas pode causar um “soluço” na disponibilidade de crédito, mas não deve afetar estruturalmente o mercado.
“Estive com CEOs de bancos, e eles dizem que não afeta nem a distribuição de produtos nem a forma como veem o crédito”, disse, no programa Roda Viva.
Srour, do Credit, considera que “talvez o BC fique numa situação complicada” num ambiente de juro alto e menor disposição para concessão de crédito.
“A projeção dele pode estar apontando uma inflação alta, por causa das perdas das âncoras (fiscal e monetária), mas, quando coloca no modelo dele o impacto dos juros longos na economia, pode não ficar tão alta a ponto de subir juros porque a economia vai estar desacelerando bem.”
Endividamento familiar em altos patamares
O analista de macroeconomia Michael Burt, da LCA, ressalta que o cenário da redução de crédito na economia brasileira é preocupante não apenas para empresas, mas também para as pessoas físicas, devido à expectativa de aumento da inadimplência entre 2022 e 2023 (5,9% para 6,7%).
Nas contas da LCA, 80% do crédito livre concedido às famílias no ano passado partiu do cheque especial e do cartão de crédito, operações caras que tendem a comprometer a capacidade de pagamento.
“A gente pode reajustar um pouco a expectativa de inadimplência, a depender do Desenrola (programa em gestação pelo governo federal), mas o endividamento familiar está lá nas alturas, o comprometimento de renda das famílias está na máxima histórica, e o qualitativo de crédito na carteira corrobora o cenário de aumento da inadimplência. O juro alto da Selic também pega bem no crédito livre às famílias”, explica.
As projeções da Tendências consideram uma redução real das concessões de crédito para pessoas físicas (-0,3%), devido ao aumento da inadimplência observado desde o ano passado, e ainda maior para as empresas (-5,8%), devido ao risco elevado de crédito para os bancos.
Com Estadão Conteúdo