Lista de devedores da B3 (B3SA3) atinge recorde e assusta. O vilão? A alavancagem
No dia 19 de agosto, a B3 (B3SA3) divulgou uma atualização do rol de inadimplentes como de praxe, mas o tamanho da lista assustou. Em vez das 3 páginas habituais do documento, este tinha 51 páginas, com mais de 2 mil CPFs em débito por operações na bolsa brasileira. De acordo com especialistas, há um principal motivo que pode ser apontado como causa do aumento de devedores: a alavancagem.
Enquanto o número de pessoas físicas com cadastro na bolsa de valores aumenta, chegando a 3,3 milhões de CPFs individuais no final de agosto – eram 600 mil em 2017 -, uma quantidade significativa desses investidores ingressam pela promessa de ganhos fáceis e rápidos, com instrumentos financeiros de risco, caso da alavancagem.
“Alavancagem: como ganhar muito com isso”, “Como operar day trade alavancado em ações mesmo com pouco dinheiro”, “Alavancagem de R$ 70 para R$ 1.600 em 35 minutos” são chamadas que você encontra em poucos cliques no YouTube e motivam as pessoas a tentarem a sorte nessas operações. O problema está no que não é dito nesses vídeos.
“Ninguém prevê para onde os preços vão nas operações da bolsa de valores. É muito complicado achar que vai entender o caminho do dinheiro e ficar rico em semanas, ou pior, dias”, diz Henrique Castro, professor da Escola de Economia de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas (EESP-FGV).
E acrescenta: “As pessoas que entraram no mercado financeiro pensando assim só podem se dar muito mal.” O problema é que o comportamento do investidor que tem propensão a acreditar nessas promessas não muda.
Imagine o seguinte cenário: o País vive uma pandemia, os salários foram reduzidos quase pela metade, a inflação só aumenta e a rentabilidade da poupança é praticamente nula. Mas as contas continuam chegando, cada vez pesando mais no bolso.
Parece familiar? Há poucos meses, muitos brasileiros se viam nessa situação (tirando a rentabilidade da poupança, ainda podem se ver assim hoje).
E eis que surge na tela do celular: “Alavancagem de R$ 500 para R$ 6.700 com estratégia segura”. A promessa é grande, o problema é que, quando o assunto é operar alavancado, o risco é muito maior.
Riscos na alavancagem são dobrados
Em termos básicos, operar alavancado é negociar com dinheiro emprestado para potencializar os ganhos (ou prejuízos). Normalmente, o dinheiro emprestado vem da corretora de valores em que o investidor opera.
Digamos que uma pessoa tem R$ 500 na conta da corretora e está muito segura de uma operação e quer comprar mais ativos do que esse valor permite. Então ela coloca esse dinheiro de garantia (como em qualquer empréstimo) e, voilá, a corretora libera R$ 100.000 para ela investir.
Acontece que esse dinheiro não entra na conta do investidor, é um dinheiro exclusivo para ser operado dentro do home broker da corretora. Em vez da pessoa investir R$ 500, com uma margem de lucro pequena, ela pode operar R$ 100.000 e potencializar os lucros.
E tem mais: a garantia que fica com a corretora não precisa ser em dinheiro. Aplicações em CDB, tesouro direto, ou mesmo em ações já funcionam como garantia para a liberação do empréstimo. Isso é a alavancagem. Mas voltemos ao exemplo.
Com o empréstimo disponível, a pessoa comprou R$ 100.000 em ativos, esperando 1% de lucro. Os ganhos serão com base nos R$ 100.000 aplicados, ou seja, R$ 1.000 de lucro – muito mais do que os R$ 5 que resultariam dos R$ 500 investidos.
Porém, se os ativos caírem 1%, serão igualmente R$ 1.000 de prejuízo. Mas a margem de garantia era de R$ 500. Nesse caso, perderam-se os R$ 500 e no lugar se formou uma dívida.
As corretoras têm liberdade para decidir o tamanho da alavancagem que irão oferecer: 10x, 100x, 500x. Assim como também são elas que definem o valor exigido de garantia, também chamado de margem.
É usual que, quanto mais tempo na corretora e mais operações realizadas, mais dinheiro seja liberado.
A alavancagem é um instrumento financeiro importante para o mercado, porém, só deve ser utilizada por investidores profissionais. As análises para investimentos de risco desse nível envolvem contexto macroeconômico, financeiro e sobre a própria operação.
“Tem muito investidor novato que entra na bolsa de valores depois de ver vídeo no YouTube, mas não sabe nada de renda variável. Recebe dicas do parente, do influenciador, mas não conhece a operação direito e, no final, acaba mal”, diz Rogério Mauad, professor de Mercados Financeiros e Finanças Corporativas do Ibmec.
Volatilidade na bolsa de valores é agravante
“É comum ter mais inadimplentes quando o mercado está em alta. Os investidores novatos ficam animados com a perspectiva de ganhos e as corretoras aumentam a disponibilidade de alavancagem”, diz Mauad.
E o mercado estava bastante em alta meses atrás. Ao final de maio, o Ibovespa fechou com um saldo de 6% de valorização, aos 126.216 pontos. No mês seguinte, o principal índice de ações da B3 alcançou sua maior pontuação do ano, fechando no dia 7 aos 130.776 pontos.
Foram consecutivas altas nesses dois meses, com o mercado financeiro vivendo uma grande euforia.
Economistas, analistas, gestores de fundos, diferentes profissionais da área reviram suas expectativas no período e começaram a projetar que o índice poderia alcançar os 140 mil pontos até o final de 2021.
Até que a onda passou e veio a ressaca. No final de junho, o Ibovespa já começou a dar sinais de queda. Em julho, o cenário piorou e de um mês para o outro os 130 mil pontos viraram 125 mil.
“Havia muitas pessoas posicionadas alavancadas quando a bolsa estava no pico. Enquanto os índices estão subindo, está tudo bem, maravilhoso. Mas aí a bolsa cai, o resultado é esse”, afirma Mauad.
Nos EUA, a alavancagem diminuiu
Diferentemente do cenário brasileiro, o principal índice de ações dos Estados Unidos, o S&P 500, acumula 19,7% de valorização desde o começo de 2021. Entretanto, em julho, o mercado financeiro americano viu o uso de alavancagem cair pela primeira vez desde o começo da pandemia do coronavírus, no ano passado.
De acordo com o Financial Times, os investidores americanos contraíram US$ 844 bilhões em empréstimos em julho, valor inferior aos US$ 882 bilhões de junho e que representa a menor soma desde março de 2020, segundo dados do Financial Industry Regulatory Authorithy (Finra, na sigla em inglês), órgão autorregulador de Wall Street.
O jornal também informa que as corretoras americanas registraram queda nos saldos de empréstimos durante o mês de julho. A Interactive Brokers, que atende 1,5 milhão de clientes, emprestou 2% a menos no período.
Já a Charles Schwab, corretora de varejo multinacional, informou que houve desaceleração nos pedidos no mês, ao menor ritmo desde que começou a prestar contas do valor neste ano.
As fontes do Financial Times atribuem a queda nas alavancagens ao mercado menos confiante sobre o que poderá acontecer nos próximos meses. Questões como a instabilidade do governo chinês com as medidas de regulamentação dos setores de tecnologia e de educação impôs prejuízos ao mercado americano.
Além disso, a incerteza sobre o futuro da política monetária do gigante norte-americano também tem impulsionado a volatilidade dos mercados.
Por não saber quando o Federal Reserve (banco central dos EUA) pretende reduzir o nível de compra dos títulos públicos, que está na ordem dos US$ 120 bilhões desde o início da pandemia, ou aumentar os juros, que estão zerados, os investidores se movimentam de acordo com a divulgação dos indicadores econômicos e as falas dos dirigentes da instituição.
Com isso, as oscilações nas bolsas americanas abalaram a confiança dos investidores, dizem as fontes.
Mesmo com oscilações muito maiores, que resultam até mesmo na desvalorização do Ibovespa, as operações alavancadas não parecem diminuir por aqui, visto a lista de inadimplentes da B3.
Para o Castro, da FGV, o brasileiro ainda não tem o hábito de investir no mercado financeiro como os americanos. “Estamos criando uma cultura de investimentos no País agora, as pessoas ainda estão aprendendo”, afirma.
Lado B do aumento de investidores na B3
Mas esse processo de aprendizado pode ser bem doloroso. No primeiro semestre de 2021, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) recebeu 100 pedidos de indenização apresentados por investidores que alegam prejuízos com operações na bolsa de valores.
Pode parecer pouco, mas na verdade é quase 10 vezes mais do que em 2020, quando a CVM recebeu 11 pedidos.
O volume é tão maior que a autarquia precisou criar uma coordenadoria exclusivamente dedicada ao Mecanismo de Ressarcimento de Prejuízos (MRP), que já existia, mas era uma unidade menor dentro da comissão.
O MRP é mantido pela B3 e administrado pela BSM, um braço autorregulador do mercado de capitais. Ele serve para assegurar aos investidores um ressarcimento de até R$ 120 mil por prejuízos causados, comprovadamente, por erros ou omissões nas operações do mercado.
Nesse processo, a CVM é como uma segunda instância do recurso. Sobem para a autarquia os casos que foram negados pela BSM, mas os investidores pediram recurso da negativa.
Entre 2011 e junho de 2020, ou seja, quase 10 anos, a CVM instaurou, em média, 2,16 processos por mês para analisar os recursos apresentados pelas supostas vítimas.
Entre julho do ano passado e abril deste ano – menos de um ano – essa média foi de 17,8 processos por mês. Para dar conta do crescimento dos recursos, além da coordenadoria, a CVM editou uma resolução, temporária e experimental, que aumenta o prazo de análise dos casos, de 90 para 180 dias úteis.
O aumento de casos corresponde ao aumento de pessoas físicas ingressando na bolsa de valores. Em 2020, foram recebidas pelo BSM 1.422 solicitações de ressarcimento de investidores, cerca de 30% delas foram atendidas por estarem de acordo com os critérios de ressarcimento.
Com isso, R$ 7,6 milhões foram ressarcidos em 2020. Neste ano, no primeiro semestre, foram 439 pedidos.
O guia para solicitação de ressarcimentos do BSM deixa claro que o MRP não tem como objetivo ressarcir decisões erradas de investimentos, e sim erros nas operações, seja por falha de sistema, dano no aplicativo da corretora, entre outros, mas que sejam técnicos e tenham provas.
Educação financeira é o caminho
Mauad, do Ibmec, explica que operar alavancado é como entrar no cheque especial do banco, você usa um dinheiro que não é seu, e quanto mais tempo fica sem repor o valor, mais juros vão correr e a dívida aumentar.
Na melhor das hipóteses, o investidor vai ficar bloqueado para realizar novas operações até que liquide o débito. “Na pior das hipóteses pode resultar em uma cobrança judicial”, diz Mauad.
Com mais pessoas interessadas em entender e operar o mercado financeiro, o número de corretoras que prestam o serviço de operações financeiras também aumentou e a concorrência passou a ser mais acirrada.
O educador financeiro André Massaro explica que o empréstimo para alavancagem se tornou um dos critérios de disputa entre as empresas. Quem oferece mais dinheiro para o investidor operar alavancado tem mais chances de fidelizar o cliente.
Procuradas pelo SUNO Notícias, cinco corretoras diferentes não quiseram comentar o assunto.
A B3 e a CVM responderam em nota. A Brasil, Bolsa, Balcão se limitou a esclarecer que os critérios de alavancagem cabem às empresas corretoras determinar, que à B3 cabe apenas divulgar o rol de inadimplentes para “garantir a integridade dos mercados”.
Já a CVM declarou que existem resoluções que dispõem do dever de verificação da adequação dos produtos, serviços e operações ao perfil do cliente. Assim como também há normas e procedimentos a serem observados em todas as operações para que sejam bem desempenhadas.
Porém, nenhuma dessas resoluções e normativas se aplicam na prática sem a educação financeira. “Não basta a B3 querer aumentar o número de clientes, tem que promover educação financeira também”, diz Mauad.
Castro diz que a CVM e a B3 têm cursos e informações relevantes em seus sites sobre gestão de risco, os cuidados para se atentar ao operar na bolsa de valores, entre outros conteúdos. “Mas, quando as pessoas querem se informar elas não procuram os sites, e sim o YouTube ou as redes sociais, que estão cheias de informações enganosas”, diz.
Para ele, um dos caminhos seria a autarquia e a Bolsa brasileira aumentarem seu alcance nas redes e promoverem mais informações relevantes, principalmente, para os investidores novatos.
No dia 31 de agosto, o rol de inadimplentes da B3 já tinha voltado quase para a normalidade: 9 páginas. Na última divulgação, antes da publicação desta matéria já tinha voltado para 4 páginas.
Porém, os especialistas ouvidos pelo SUNO Notícias alertam que o tamanho da lista deve continuar oscilando tanto quanto a bolsa de valores. Isso porque o número de investidores iniciantes só aumenta, assim como os vídeos que pregam a alavancagem como o instrumento da riqueza.