A retirada das tropas dos Estados Unidos do Afeganistão tomou conta do noticiário nos últimos dias. A tensão geopolítica voltou a ser assunto entre especialistas, com impactos sociais e humanitários. A dúvida paira sobre os impactos dos acontecimentos sobre os mercados.
Em outubro do ano passado, o ex-presidente Donald Trump anunciou que retiraria a totalidade das tropas do país, cerca de 10 mil soldados.
A decisão teve como base o acordo assinado com o Talibã, em fevereiro de 2020, de que o grupo não estabeleceria um regime extremista após a saída dos EUA. Mas não foi o que veio à tona nesta semana, com a tomada de poder pelo grupo. Como tudo isso pode afetar os mercados?
O que isso significa para os mercados
Segundo Mauro Rochlin, doutor em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Mestre em Relações Internacionais pela PUC-RJ, o efeito da retirada dos Estados Unidos diz mais respeito a uma questão política do que econômica.
“Até agora, desde a invasão de Cabul, não vimos impactos relevantes em termos dos principais indicadores econômicos mundiais”, comentou o especialista.
Na véspera, o S&P 500 encerrou em mais uma máxima histórica, a sua 49ª deste ano. O rendimento das Treasuries continua em baixa, mostrando uma demanda por títulos norte-americanos, o que representa uma força do dólar. A divisa americana, inclusive, não reportou perdas relevantes frente ao euro nos últimos dias.
“Os termômetros que indicariam um impacto maior desse acontecimento não mostraram nada muito relevante”, disse Rochlin ao Suno Notícias.
O professor, inclusive, disse que a retirada das tropas e os conflitos já podem ter sido “incorporadas aos preços” das Bolsas mundo afora, uma vez que a notícia da saída dos Estados Unidos não é nova.
“Não se esperava que os acontecimentos fossem tomar essa magnitude de forma tão acelerada, mas com a saída das tropas nenhum outro resultado seria possível”, lembra o especialista. “Mas, do ponto de vista econômico, muda muito pouco. A economia afegã vale zero no tabuleiro mundial.”
A pergunta que o mercado se faz se refere às commodities. Qualquer agito no Oriente Médio, os investidores já se preocupam com os impactos disso no petróleo, por exemplo. E, mexendo em commodities, o Ibovespa é afetado.
Contudo, para Gustavo Cruz, estrategista da RB Investimentos, essa preocupação deve ser mitigada neste episódio.
“Os impactos diretos ao escoamento do petróleo existem, mas são pequenos. Além disso, o Afeganistão não tem grande participação em nenhuma outra commodity”, comentou. A exceção ocorreria caso essa situação desencadeasse outros conflitos na região.
No que se refere ao ouro, o movimento pode ser altista, como já foi observado em outras ocasiões de tremor geopolíticos. Mesmo assim, as expectativas não são muito grandes.
Quanto à figura de Joe Biden, o estrategista diz que, internamente, ele pode sair fortalecido. Com a retirada das tropas, algo que já era desejo do republicano Trump, Biden pode angariar a confiança dos oposicionistas.
Com isso, segundo Cruz, o atual presidente e o Partido Democrata podem ganhar força nas próximas eleições, e direcionar os futuros investimentos para suas pautas, que normalmente são expansionistas.
Por outro lado, do ponto de vista social, a crise no Afeganistão pode retomar uma onda de migração de refugiados ao redor da Europa, como ocorreu na década passada.
Esse movimento culminou na ascensão de governos de extrema-direita pró-fechamento de fronteiras, lembra o estrategista.
O que está acontecendo
A última vez que um entrave na política externa ficou no centro das atenções dos investidores foi em janeiro de 2020, com as tensões entre Estados Unidos e Irã. No caso atual, não é como se a saída dos norte-americanos do Afeganistão fosse uma surpresa.
A complicada situação do Afeganistão remete aos acontecimentos do início do século 19, com histórico repleto de disputas políticas e religiosas. Após contínuas invasões ao país, britânicos tornaram a região seu protetorado.
Por mais que os europeus tenham deixado o país em 1921, ainda implementavam fortes intervenções políticas e econômicas. Décadas depois, em 1960, o Afeganistão renovou sua constituição e estabeleceu, entre outras medidas, o voto feminino, em 1964.
Alguns grupos usaram esses novos aspectos “diferentes” do país como um símbolo de interferência estrangeira na cultura local. Em 1978, o PDPA, partido apoiado pela União Soviética, estabeleceu um golpe militar, com o intuito de interromper o avanço do Islã.
Após o PDPA ter executado uma série de rivais políticos, a URSS ocupou o país em 1979. Em meio à Guerra Fria, os Estados Unidos, por meio da CIA, começaram a financiar rebeldes muçulmanos para mitigar o controle soviético.
Estabeleceu-se uma guerra entre URSS e mujahedins, que tinham o apoio norte-americano.
Em 1996, um dos grupos mais radicais do mujahedins se separou, criando o Talibã. Logo depois, o grupo fundamentalista se tornou aliado da Al-Qaeda, responsável pelo atentado às Torres Gêmeas em 2001.
Após financiar grupos rebeldes por anos na região, os Estados Unidos colocaram o Talibã no considerado “Eixo do Mal”.
A última vez em que o Talibã esteve no controle do Afeganistão foi em outubro de 2001. Desde então, os Estados Unidos ocuparam o local e, efetivamente, pouco fizeram para combater o grupo radical.
Da mesma forma, o exército afegão não se preparou para uma eventual saída das tropas norte-americanas, mesmo recebendo investimentos trilionários dos norte-americanos.
No último domingo (15), após o Talibã assumir o poder de Cabul, capital do Afeganistão, o presidente do país, Ashraf Ghani, fugiu em direção ao Tajiquistão. Milhares seguiram o exemplo e tentaram sair do país a todo custo.
Unverified Reports of desperate Afghan refugees falling to their deaths from US Air Force evacuation planes as defeated US personnel flee Kabul airport. pic.twitter.com/n4OPKNxxZg
— Afshin Rattansi (@afshinrattansi) August 16, 2021
O que o Afeganistão representa geopoliticamente
O Afeganistão fica em uma região conturbada do ponto de vista geopolítico.
No início do século passado, o país fazia fronteira com a URSS, ao norte, e a oeste estava ligada ao Irã, que detinha grande influência britânica.
Hoje, o país está colado à China, que inclusive tem intenções de incluir o Afeganistão na Belt and Road Initiative (Nova Rota da Seda), o que pode conferir uma vantagem econômica considerável à segunda maior potência do planeta.
A China até já acenou positivamente para o novo governo afegão. Uma porta-voz do governo chinês disse que o país respeita o direito do povo afegão em decidir seu próprio futuro e deseja seguir mantendo relações amistosas e de cooperação com o Afeganistão. A embaixada chinesa em Cabul segue em funcionamento.
O Paquistão, por sua vez, foi um dos poucos países que mantiveram relações diplomáticas com o Talibã, quando o grupo controlou o Afeganistão durante a década de 1990. A fala do primeiro-ministro do país dá a entender que o governo paquistanês deve aceitar a volta do grupo extremista.
Além disso, atualmente o vizinho Irã tem ligações com grupos considerados terroristas pelos Estados Unidos, como o Hezbollah.
O Afeganistão também ocupa uma importante região para o escoamento de petróleo, embora não tenha saída para o mar. Sua história sempre foi pautada por relevância em rotas comerciais.
Especialistas têm dito que, em um cenário de longo prazo, caso o Afeganistão se torne palco para atuação terrorista, o curso normal de commodities e negociações comerciais como um todo, que dependem desse espaço, podem ser impactados.
Notícias Relacionadas