Delaware, estado de Joe Biden, é um paraíso fiscal para empresas off-shores

Antes de se tornar presidente dos Estados Unidos, Joe Biden foi senador do estado americano do Delaware por 36 anos.

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O pequeno Delaware, chamado de “primeiro estado”, pois foi o primeiro a ratificar a Constituição dos EUA em 1787, nunca enviou um seu representante político para a Casa Branca. Até a chegada de Biden.

Com a eleição do novo presidente democrático, o Delaware ganhou destaque em nível internacional.

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Mas esse feudo eleitoral de Biden também representa um problema de coerência entre as propostas da campanha eleitoral e a realidade do estado.

Isso pois durante a campanha, Biden propôs uma grande reforma fiscal, aumentando os impostos para as camadas mais ricas da população, para financiar a política fiscal expansionista do governo.

Entretanto, o Delaware é conhecido como um paraíso fiscal, onde centenas de milhares de empresas off-shores instalaram – apenas no papel – suas sedes legais. Isso pois o estado oferece uma série de vantagens, como por exemplo a não obrigatoriedade de ter uma contabilidade ou a isenção de qualquer imposto sobre os lucros realizados fora do território dos EUA.

E assim como os senadores dos EUA são enviados para o Congresso com o mandato claro de representar e defender os interesses de seu Estado, essa situação cria um problema político para Biden, que entre 1972 e 2008 atuou no Senado em nome do Delaware.

PIB dos EUA está sediado (no papel) em Delaware

Para ter uma ideia, 67,8% das 500 maiores empresas dos EUA estão formalmente sediadas em Delaware.  E 89% das empresas que levaram adiante uma oferta pública inicial (IPO) em 2019, tinham sede em Delaware. Entre elas gigantes como Uber (NYSE: UBER) ou Lyft (NASDAQ: LYFT).

Somente em um prédio, no número 1209 de North Orange Street, em Wilmington, a cidade de Biden, estão sediadas 300 mil empresas.

Ou seja, em um só edifício está praticamente concentrado todo o Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados Unidos.

A distância entre a casa de Biden e o prédio em North Orange Street é de apenas 10 km, ou 12 minutos de carro. Impossível ignorar a existência de um prédio onde estão sediadas, entre outras:

  • Alphabet-Google
  • American Airlines
  • Bank of America
  • Berkshire Hathaway
  • Apple
  • Coca-Cola
  • Ford
  • General Electric
  • JPMorgan Chase
  • Wal-Mart

A enorme concentração de grandes corporações deu ao estado do Delaware um poder gigantesco, não apenas economicamente, mas também sob o perfil jurídico.

Isso pois uma vez que as regras sobre os assuntos internos de uma empresa – como contabilidade, governança, etc… – derivam do estado em que a empresa está constituída, todas as disputas judiciais envolvendo entidades constituídas em Delaware são julgadas de acordo com a lei de Delaware. Mesmo se, de fato, elas tem suas sedes operacionais em outros estados.

Isso se traduz em uma preeminência da lei societária de Delaware sobre a de outros estados dos EUA, que já dura mais de um século.

Não por acaso, o embate jurídico entre a gigante francesa de luxo LVMH e a Tiffany – antes do acordo que levou a aquisição da empresa de joias – teve como palco um tribunal de Delaware. Isso pois a holding Tiffany & Co é constituída em Delaware, no mesmo prédio onde a Apple, Google, Coca-Cola e outras grandes corporações estão sediadas.

Uma empresa cada 1,5 cidadão

Com 967.000 habitantes, o Delaware tem 1,5 milhão de empresas: uma para cada 1,5 cidadãos, contando até bebês e centenários.

Nos últimos anos houve uma verdadeira corrida para registrar empresas no estado. Só em 2019, foram cadastradas 226 mil novas entidades, 5% a mais que no ano anterior.

Para o governo de Delaware, esse é um negócio lucrativo: 28% do orçamento do estado provém de impostos cobrados na criação de novos CNPJs. Uma receita de quase US$ 1,4 bilhão (cerca de R$ 7,7 bilhões) somente em 2019, de um orçamento total de R$ 4,4 bilhões.

Delaware conta tanto com essas receitas que os escritórios da Secretaria de Estado, onde as empresas se cadastram, ficam abertos até meia-noite de segunda até quinta-feira, e até às 22h30 de sexta-feira.

A legislação promulgada ao longo de décadas para favorecer as empresas e a eficiência dos tribunais fazem o resto.

Delaware também tem um tribunal especial muito dedicado ao direito corporativo, a Corte da Chancelaria, famosa por sua eficiência.

As decisões são rápidas e, como os negócios prosperam em um ambiente de previsibilidade e certeza jurídica, esse componente resultou no domínio de Delaware no setor corporativo dos EUA.

A jurisprudência de Delaware é tão influente que outras jurisdições, mesmo ao julgar casos em empresas sem referência a Delaware, mostram uma deferência à autoridade dos tribunais de Delaware. Um círculo virtuoso que acaba fortalecendo e solidificando a posição desse estado.

Falta de transparência gera riscos

Entretanto, há também aspectos negativos.

Milhares de empresas em Delaware têm como acionistas entidades estrangeiras ou pessoas físicas atraídas sobretudo pelos benefícios fiscais de uma determinada forma de empresa, a LLC (Sociedade de Responsabilidade Limitada).

As LLCs que não atuam no território do Estado não pagam impostos sobre lucros ou ganhos de capital relacionados com a venda de ações ou propriedades.

E não há imposto sobre a herança de ações da empresa se o proprietário não for residente em Delaware.

Além disso, uma pessoa física pode ser acionista, administrador, secretário e executivo da empresa ao mesmo tempo.

Não é necessário ter uma sede ou endereço postal em Delaware. Os registros contábeis não precisam necessariamente ser depositados no território do Estado, mas também podem ser mantidos em outro paraíso fiscal, como as Ilhas Virgens Britânicas ou Belize.

Não existe um capital social mínimo para constituir uma empresa deste tipo.

E, claro, há o sigilo. As identidades dos sócios das LLCs não são divulgadas ou mesmo comunicadas à administração estadual.

Assim como ninguém, nem mesmo as autoridades locais, podem saber o endereço dos acionistas ou a percentual de participação acionária de cada um.

A impossibilidade de conhecer os verdadeiros titulares de uma empresa é um dos fatores que atraem todos os tipos de interesse em Delaware.

Em suma, o Delaware não tenta atrair empresas através de clássicas medidas “market friendly”, como por exemplo a redução dos impostos corporativos. Isso pois no Estado esse tipo de imposto é de 8,7%, enquanto em outras unidades da federação americana, como Texas ou Nevada, é 0%.

O Delaware atrai empresas pela falta de transparência e a quase total ausência de obrigações contábeis para as empresas. Algo que, segundo os especialistas ouvidos por jornais dos EUA como o “The New York Times” ou “The Washington Post”, significaria “esticar” até o limite as prerrogativas legais de cada estado dos EUA em relação as obrigações federais.

Nova lei poderia mudar tudo

Todavia, tudo isso poderia mudar em breve.

Anova Lei de Transparência Corporativa, recentemente aprovada pelo Congresso em Washington, exige que as empresas relatem os nomes de indivíduos que possuem e controlam uma entidade ao Centro de Luta contra os Crimes Financeiros (FinCen) do Tesouro dos EUA. Um órgão parecido com o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) no Brasil.

Segundo a nova lei, as informações poderão ser consultadas por órgãos de segurança pública para investigações autorizadas e por instituições financeiras.

Entretanto, as empresas serão obrigadas a fornecer somente o nome, endereço, data de nascimento e carteira de habilitação ou outro número de identificação de seus titulares. E somente se a empresa que denuncia o eventual crime concordar em fazer o mesmo.

Segundo as organizações internacionais que lutam contra a evasão fiscal e a lavagem de dinheiro, esses dados não poderão ser divulgados ao público, mas permanecerão em arquivos secretos das autoridades dos Estados Unidos.

O novo presidente dos EUA poderia atuar junto ao Congresso – controlado pelo Partido Democrata – para mudar a lei. Mas tudo dependerá da vontade política de Biden.

 

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Carlo Cauti

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