Por mais que a ciência e a tecnologia desmistifiquem as questões que afetam diretamente o ser humano, as alegorias ainda são válidas para prevenção de grandes frustrações geradas por expectativas exacerbadas, como as provocadas pelos ciclos de alta do mercado financeiro.
Por Jean Tosetto
Um dos livros brasileiros mais citados sobre renda variável tem o sugestivo nome de “Faça Fortuna com Ações” (https://amzn.to/2sLGq3a) de Décio Bazin, um investidor da Bolsa de São Paulo que era também um jornalista erudito. Na Mitologia Romana havia uma deusa chamada Fortuna: era uma senhora de olhos vendados que caminhava pela Península Itálica portando uma cornucópia – um tipo de vaso do qual ela tirava dádivas e desgraças aleatoriamente, para distribuir para quem encontrasse pelo caminho.
O culto à deusa Fortuna foi introduzido em Roma por Sérvio Túlio. Em algumas representações ela também segurava um timão (peça que controla o leme de embarcações). Isso significava que a Fortuna ditava o destino das pessoas – ora lhes agraciando com riqueza, saúde e amigos; ora lhes castigando com pobreza, doença e solidão. Muitos lhe pediam para que ela não retirasse as bençãos alcançadas, nem sempre sendo atendidos.
A maioria absoluta dos investidores e especuladores que ingressam no mercado de capitais possui o desejo (expresso ou oculto) de fazer fortuna, no sentido monetário. Quase dois milénios depois do culto à Senhora Fortuna cair em desuso, um estudioso da Bolsa de Nova York, Benjamin Graham, autor do livro “O Investidor Inteligente” (https://amzn.to/2QxSjTp), criou a figura do Senhor Mercado: um sujeito sem rosto e irracional, de humor variável.
Gerações distintas com DNA semelhante
O Senhor Mercado, assim como a Senhora Fortuna, parece conduzir o destino de milhares de agentes do mercado financeiro. Graham não o descreveu com uma cornucópia, mas podemos considerar que o Senhor Mercado porta uma bolsa repleta de ações e fundos de investimentos cuja liquidez, levada pelos ventos das notícias, cria movimentos de manada que levam seus seguidores para o topo da montanha ou para a beira do abismo.
Quando a Bolsa, propriamente dita, ingressa num ciclo de alta generalizada, a rentabilidade da carteira de muitos acompanha o processo, a ponto de cada vez mais indivíduos ficarem ansiosos para manter o patrimônio acumulado. O medo de perder o patamar atingido desperta a vontade de realizar os lucros, iniciando uma avalanche de vendas de ativos que inverte o sentido de ascensão dos índices que medem o mercado.
O medo de perder algo conquistado é pior do que o sentimento de nunca ter atingido uma meta planejada. Neste momento, em janeiro de 2020, há razões para acreditar que muitos brasileiros que operam na Bolsa de São Paulo estejam passando por isso.
Vejamos: 2019 foi um dos anos mais promissores do século 21, no mercado de capitais brasileiro. O IBOV subiu mais de 30%, mas são comuns os relatos de investidores cujas carteiras cresceram 40, 50, 80%. Entre aqueles que estão no mercado financeiro há menos de cinco anos, o mês de dezembro de 2019 foi assombroso, com carteiras rendendo acima de 10 ou 20%, mesmo entre os investidores mais defensivos.
O pavor do inevitável
Agora vem a triste notícia para quem está vivendo isso pela primeira vez: esta onda de números positivos não vai durar para sempre. Cedo ou tarde ela vai arrebentar na praia e o refluxo pode levar para o fundo do mar muitos banhistas desprevenidos.
Nestas horas, não adianta orar para a Senhora Fortuna ou para o Senhor Mercado. Ambos são entidades amorais, que não reconhecem o bem ou o mal, dado que agraciam ou prejudicam os sujeitos aleatoriamente. São entidades que não levam as coisas para o lado pessoal.
Então, como lidar com a ansiedade de ver o patrimônio oscilando a cada vez que se acessa a plataforma de uma corretora de valores?
Durante o auge do Império Romano, não havia mercado financeiro globalizado. Não havia ciclos de baixa nas Bolsas ao redor do Mar Mediterrâneo e as pessoas tinham outras preocupações, como os terremotos, por exemplo. De tempos em tempos o vulcão do Monte Vesúvio provocava tremores, cujas notícias assustavam servos e cidadãos por toda a região da Itália.
Quando o pior não se confirma
O filósofo Sêneca, que viveu entre 4 A.C e 65 D.C., já tinha em mente que a deusa Fortuna era somente uma alegoria. Porém, ele se valeu de seu apelo para propor uma fórmula para enfrentar as eventuais frustações que rotineiramente abalam as pessoas, especialmente as mais otimistas.
Conforme Alain de Botton relata em seu livro “As Consolações da Filosofia” (https://amzn.to/2ZXJkxK), Sêneca propunha que as pessoas fizessem uma meditação diária logo ao acordar, que ele denominou como “praemeditatio”. Nela, deveríamos pensar, por alguns minutos, no que de pior poderia nos acontecer naquela data.
No caso de um terremoto, as pessoas poderiam perder suas casas – o que seria terrível. Ocorre que os terremotos não acontecem todos os dias. Hoje, sabemos que eles não acontecem em todos os lugares. Então, como na maioria dos dias as tragédias não ocorrem, aquele que adota os ditames da filosofia estoica, reconhecendo que a deusa Fortuna não lhe deve nada, tende a colher mais motivos para ser feliz no longo prazo.
Nas palavras atribuídas à Sêneca, “nenhuma dádiva da Fortuna nos pertence de fato”. Ele prossegue: “Nada, seja público ou privado, é estável; os destinos dos homens, assim como das cidades, estão sujeitos a um turbilhão.”
Que ocorra um turbilhão, cedo ou tarde, é algo inevitável. O grande problema é não estar preparado para enfrentá-lo. A solução é tentar preservar o que é essencial e abrir mão daquilo que é supérfluo. Podemos desfrutar, sem remorsos, de uma vida confortável numa bela casa de campo, desde que saibamos seguir em frente se, por acaso, perdemos esta condição privilegiada.
Da filosofia para o capitalismo
Se levarmos esta lógica para o mercado financeiro, poderemos comparar os terremotos aos eventos de grande volatilidade na Bolsa, que derrubam as cotações dos ativos mais negociados do mercado de capitais, afetando o patrimônio dos investidores.
O investidor de longo prazo também pode adotar um praemeditatio diário, refletindo sobre o que de pior pode acontecer durante um pregão eletrônico. Afinal de contas, o Senhor Mercado não lhe deve nada.
A grande lição é aprender que a essência do investimento em longo prazo está na geração de renda passiva, não no acúmulo de patrimônio. Por mais contraditório que possa parecer, a variação do patrimônio da carteira de um investidor á algo supérfluo e circunstancial, dado que a essência está na capacidade dos ativos financeiros gerarem caixa suficiente, que lhes permitam distribuir dividendos.
O terremoto fez a casa cair. Estou vivo? Posso trabalhar? Vida que segue. A Bolsa desabou. As companhias quebraram? Os dividendos estão preservados? Vida que segue.
As Bolsas de Valores não sofrem com terremotos diariamente. Eventos traumáticos ocorrem com certa raridade. No longo prazo, a tendência é de crescimento gradual, de modo que aqueles que focam em geração de renda passiva, acabam sendo agraciados, também, com o aumento consistente de patrimônio.
A sabedoria dos antigos
Ainda considerando o que é essencial, vale lembrar que nunca devemos colocar na Bolsa o dinheiro que pode fazer falta no curto ou médio prazo. Se o dinheiro é essencial para nossa sobrevivência, ele não deve ser posto ao sabor dos ventos, do timão da Senhora Fortuna ou do humor do Senhor Mercado.
A deusa Fortuna, bem como toda a Mitologia Romana, começou a perder a força no imaginário popular europeu com o crescimento das religiões monoteístas, cujas escrituras contém ensinamentos e conselhos oriundos das tradições seculares do Oriente Médio. Do livro de Eclesiastes resgatamos uma passagem atemporal (11.1-2):
“Empregue o seu dinheiro em bons negócios e com o tempo você terá o seu lucro. Aplique-o em vários lugares e em negócios diferentes porque você não sabe que crise poderá acontecer no mundo.”
Portanto, como não sabemos onde e quando poderá acontecer um terremoto, por mais que haja avanços científicos nesta área, devemos nos proteger por meio da diversificação, pesquisando ativos com ótimos fundamentos, longe das bordas das placas tectônicas.
Os mitos persistem
Retomando, o mês de dezembro de 2019 foi emblemático para os investidores brasileiros. Muitos bateram os principais benchmarks com folga. Isso não faz deles elementos geniais. Por mais que o Senhor Mercado também seja uma alegoria, não devemos subestimar sua capacidade de cegar os incautos. Ciclos de alta exacerbada na Bolsa são prodígios na formação deles.
Precaução e diversificação são essenciais para investimentos de longo prazo. Assinar a Suno Research também. Os relatórios preparados por seus analistas equivalem aos praemeditatios estoicos, quando o assunto é renda variável. Saiba mais em:
https://www.suno.com.br/nossas-assinaturas/
[Crédito da imagem: “Fortune” (1754), pintura de Taddeo Kuntze (1727–1793) pertencente ao acervo do Museu Nacional da Polônia, em Varsóvia]